Jornal Correio Braziliense

Cidades

Crônica da Cidade

Caixa de afeto

Dois anos antes de partir, minha mãe me entregou uma caixa de papelão grande e me pediu que eu só a abrisse quando sentisse muita saudade do que fui. Demorei três anos para criar coragem... Lá dentro encontrei, além de muitas fotos da minha adolescência, reportagens minhas ou sobre alguma coisa que fiz, uma linda aquarela pintada por ela e um bilhete escrito à mão: "Você é dona do seu destino. Nada nem ninguém poderá detê-la nessa linda e maravilhosa caminhada. Olha o que você construiu até aqui e siga em frente".

Ninguém recebe placidamente uma ordem de mãe. Ou reagimos a ela ou a acatamos. E eu nunca fui besta de desobedecê-la, nem jamais serei. Abrindo essa embalagem e desamarrando os laços do passado, gosto do que vejo. Tenho visitado, sob sua orientação espiritual, as lembranças. Revirando essa caixa de afeto, encontro memória de todo tipo. Esquadrinho épocas, refaço trajetos, revejo cenas, reencontro amigos. Vou a bares, escrevo matérias, tenho filhos, ando de pés descalços na praia, leio livros que me marcarão para sempre, conheço pessoas que serão, também para sempre, minhas. Nessa dança do tempo, me vejo com várias idades. Enxergo várias Anas, que se sobrepõem uma à outra, assim mesmo em camadas.

A viagem me fez reconstruir várias ideias, sepultar outras e pensar no presente. Os tempos atuais, nervosos e difíceis, nada mais são do que mais uma camada, depois coberta por outra, e outra, até virar um imenso mil folhas, cheio de sabor e nem tão doce assim. Que venham as novas camadas. Anseio mesmo por elas.

Minha mãe tinha mesmo o dom de tornar o complicado mais simples; transformar as mágoas em páginas viradas; o dia a dia agoniante em um prato de sopa quentinho numa noite aconchegante. A minha mãe tinha superpoderes, ainda tem. A sua também, certamente. Recorra a eles para todo o sempre, porque não importa onde elas estejam, sempre saberão exatamente a sua necessidade.