Jornal Correio Braziliense

Cidades

Crônica da Cidade

Impecáveis matemáticas

Esbarrei num punhado de poemas anotados com canetinhas coloridas, daquelas hidrográficas, com ponta 0,4mm, minhas preferidas, anotadas num caderno de capa preta genérico, tipo Moleskine, páginas amareladas. Paulo Leminski é o nome do poeta que fisgou a atenção. Compartilho aqui alguns dos trechos responsáveis pelo deleite numa manhã fria de julho. Alerto: atenção às pausas, elas dão tom de meditação à leitura, principalmente a dos haikais, uma de suas formas preferidas de poetizar.

Ele sabia usar o humor com sutileza e inteligência:

;Relógio parado / o ouvido ouve / o tic tac passado;

;O sol nascente / me fecha os olhos / até eu virar japonês;

;Quem é vivo / aparece sempre / no momento errado / para dizer presente / onde não foi chamado;

;De repente descobri / não digo América nem pólvora / obra de tantos / conta perdida / Ficar na ponta dos pés / além de nobre exercício / a mais sábia medida / para subir na vida;

;Podem ficar com a realidade / esse baixo-astral / em que tudo entra pelo cano / eu quero viver de verdade / eu fico com o cinema americano;

Também demonstrava o amor em curtos versos: ;Meus amigos / quando me dão a mão / sempre deixam / outra coisa / presença / olhar / lembrança / calor / meus amigos / quando me dão / deixam na minha / a sua mão;

Tem ainda inspiração metalinguística. Da mais simples, como ;Eu te fiz / agora; ou ;sou teu deus / Poema;, à elaborada: ;um dia a gente ia ser homero / a obra nada menos que uma ilíada / depois / a barra pesando / dava pra ser aí um rimbaud / um ungarretti um fernando pessoa qualquer / um lorca um éluard um ginsberg / por fim / acabamos o pequeno poeta de província / que sempre fomos / por trás de tantas máscaras / que o tempo tratou como a flores;

E, em ruinogramas, registra a série de percepções sobre a capital e nos presenteia com descrição tão certeira quanto a poesia concreta de Sampa, por Caetano:

;Em Brasília, admirei. / Não a niemeyer lei, / a vida das pessoas / penetrando nos esquemas / como a tinta sangue / no mata-borrão, / crescendo o vermelho gente, / entre pedra e pedra, / pela terra adentro. / Em Brasília, admirei. / O pequeno restaurante clandestino, / criminoso por estar / fora da quadra permitida. / Sim, Brasília. / Admirei o tempo / que já cobre de anos / tuas impecáveis matemáticas. / Adeus, Cidade. / O erro, claro, não a lei. / Muito me admirastes, / muito te admirei.;