Sartre, quadrinhos e rock;n roll
Não sei como fomos parar lá pela primeira vez. Mas foi um encontro improvável. Eu e meu irmão nos perdemos entre letras e cores. Era milagre que um lugar assim existisse. Religiosos discordariam, claro. Mas, tente convencer dois moleques no fim da infância que uma gibiteca não é algo vindo dos planos etéreos da magia divina. Diversas edições de todos os quadrinhos prediletos ali, ao alcance dos dedos. Cheiro de poeira, caixas e estantes, capas com ilustrações especiais, nerds vagando por todos os lados. Foi assim que, pela primeira vez na vida, acho que aos 11 ou 12, botei os pés no Espaço Cultural Renato Russo, na 508 Sul.
Isso foi na primeira metade da década de 1990. À época, todas as manhãs, a molecada do Gama tinha um encontro com a TV Colosso, e uma das últimas atrações era a animação dos X-Men, da Marvel/Fox. Mutantes lutavam para serem aceitos entre humanos em um mundo ficcional pintado com os traços da realidade. Muita coisa estava ali. A guerra fria, os direitos civis para negros nos Estados Unidos, a batalha ideológica entre Martin Luther King, representado pelo professor Charles Xavier, e Malcom X, vivo no espírito de Erik Magnus Lehnsherr, o Magneto. Rolou uma paixão. Nem sabia que sabia dessas coisas.
Responsáveis por se aprontar, almoçar e caminhar as quadras que nos separavam da escola, meu irmão e eu nem sempre conseguíamos assistir às agruras de Wolverine, as batalhas contra Apocalipse ou o Senhor Sinistro, e outras aventuras. Ficava uma lacuna. Naquela época, eu não sabia, estava em vias de jogar minhas primeiras partidas de Dungeons and Dragons. Já tinha visto os gibis dos X-Men quando mais novo e até outras publicações memoráveis. Mas, por algum motivo, não tinha relacionado o desenho da TV, à nona arte.
Foi quando, no melhor estilo Maurício de Souza, uma lâmpada acendeu sobre minha cabeça e comecei a fazer perguntas. Como serão os heróis no quadrinho? Que aventuras estarão vivendo? Peguei um dinheirinho guardado e, na oportunidade seguinte, na banca de revistas da 107 Sul, conheci a minissérie Programa de Extermínio, em que Cameron Hodge, uma cabeça ligada a um corpo cibernético escorpiônico, anula, prende e julga Ciclope, Jean e os outros X-Men. Veio a curiosidade de saber o que havia acontecido antes. E eis que vamos parar na 508 Sul com tempo o suficiente para ler tudo o que fosse possível.
Até o retorno, alguns anos se passaram. O mistério, a lacuna no tempo, a visita às bancas e livrarias para matar a sede, os jogos de RPG, tudo isso fomentava o meu amor pelas histórias e pelo já distante templo das revistas em quadrinho. O espaço guardado na memória, então, repentinamente reapareceu. Graças a uma peça de teatro de Jota Pingo, que juro mas não tenho certeza, era uma encenação de As mãos sujas, de Jean Paul Sartre. Pingo, como minha mãe o chamava, foi quem levou Renato Manfredini ao palco da 508 Sul no Último Rango, no começo de 1980. Ninguém soube à época, mas a sensação de saber onde ficava o lugar onde se guardavam todos os gibis do mundo tinha um nome: emancipação.
Daí em diante, o mundo se abriu de uma vez. E, de peças de teatro, de quadrinhos, de livros que viriam a mudar a minha visão de mundo, muitos deles lidos entre títulos da nona arte (X-Men era, então, apenas uma das publicações) o Espaço Cultural Renato Russo virou point para os amigos de coturno e blusas pretas. Virou local de encontro com a namorada, de shows de bandas cover, de passar o tempo sem nada pra fazer e virou, até, personagem de documentário. Na penúltima vez que estive lá, fui com a Paula, e levamos nossa filha a uma exposição. Na última, doei uns livros para a nova biblioteca. O galpão já borbulhava cultura em Brasília desde 1974. Criado durante a ditadura, foi fechado inúmeras vezes, mas sempre resistiu. Ampliar horizontes, afinal de contas, é verbo subversivo. Não obedece a governos.