Jornal Correio Braziliense

Cidades

Crônica da Cidade

Clarice no caderno


Na década de 1960 ou 1970, era comum no Rio de Janeiro os professores pedirem aos alunos que entrevistassem os escritores. E eles povoavam a capital dos cariocas; alguns eram os maiores do modernismo e da história da literatura brasileira: Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Nelson Rodrigues, João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector.

Narrei, neste espaço, a tentativa da garota Beth Ernest Dias, futura flautista, de entrevistar Dalton Trevisan. Mas ela só recebeu como resposta um calhamaço de matérias jornalísticas nas quais o Vampiro de Curitiba ressaltava a sua aversão extrema a qualquer exposição pública.

Pois bem, no livro Todas as crônicas (Ed. Rocco), Clarice reproduz uma dessas entrevistas feitas para um caderno de estudante. Recomendo vivamente a leitura do tijolaço de mais de 700 páginas. É uma aventura metafísica a partir de situações triviais do cotidiano.

As perguntas são rápidas, e as respostas de Clarice, também. Ao ser indagada sobre qual é a coisa mais antiga do mundo, ela responde: ;Poderia dizer que é Deus, que sempre existiu;. ;E qual a coisa mais bela?;, indaga o entrevistador. E Clarice fulmina: ;O instante da inspiração;. Na verdade, Clarice havia dito em uma das crônicas: ;Inspiração não é loucura; é Deus;.
O estudante ou a estudante emenda uma pergunta no tema: ;E quando Deus criou o universo, não o fez no momento de Sua maior inspiração?; Clarice não foge: ;O universo sempre existiu. O cosmos é Deus;. Ao ser interrogada sobre qual das coisas é a maior, Clarice não tem dúvida: ;O amor, que é o maior dos mistérios;.

E qual seria o sentimento mais constante? Clarice gostaria de dar outra resposta, mas aponta: ;O medo. Que pena que eu não possa responder: é a esperança;. E o melhor dos sentimentos? ;O de amar e ao mesmo tempo ser amada, o que parece apenas um lugar-comum, mas é uma de minhas verdades.;

Qual o sentimento mais rápido? ;O sentimento mais rápido, que chega a ser apenas um fulgor, é o instante em que um homem e uma mulher sentem um no outro a promessa de um grande amor.;

É impressionante como Clarice se revela mesmo em um questionário para estudantes. Ao ser provocada a dizer qual é a mais forte das coisas, ela diz: ;O instinto de ser;. O que é mais fácil de se fazer? ;Existir, depois que passa o medo;. Ela tinha sabedoria, mas não a do bom senso; e sim, a de uma vida experimental. Qual é a coisa mais difícil de realizar? ;A própria felicidade, que vem do conhecimento de si mesmo.;