Cangaceiro pop
Nesta época do ano, de muito frio, as noites brasilianas praticamente clamam por uma festa de são-joão, com milho cozido, pé de moleque, galinhada, pipoca, baião de dois e quentão. No ano passado, foi publicada uma pesquisa mostrando que Brasília é a capital em que se realiza o maior número de festanças juninas por metro quadrado. Quando morava no Plano Piloto, muitas vezes saía com meu filho pelas superquadras com a certeza de que encontraria alguma festa para brincar.
E, realmente, sempre encontrava. Mas, para mim, são-joão é música de Luiz Gonzaga. Se tivesse inventado só as canções juninas, já seria considerado um gênio da música popular em qualquer lugar do mundo. Mas ele ainda criou o xote e o baião. Quando escrevi o livro Da poeira à eletricidade ; uma história da música em Brasília, soube que Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro se apresentavam em cima dos caminhões para os operários nos tempos da construção da cidade.
Fiquei com inveja de quem assistiu. Mas, no fim da década de 1970, tive o privilégio de assistir a um memorável espetáculo do Gonzagão, durante o lançamento de um conjunto residencial no Gama, em condições bastante semelhantes aos shows da alvorada de Brasília.
Tentei marcar uma entrevista, mas a produção avisou que só seria possível se eu fosse na Kombi e conversasse com Gonzagão durante o trajeto. E lá fomos nós, como se viajássemos rumo aos tempos épicos de Brasília, quando ele subia nas carrocerias dos caminhões.
Gonzagão sentiu-se escanteado pela Jovem Guarda, na virada dos anos 1960, e cantava o Xote dos Cabeludos, que era muito engraçado: ;Cabra que usa pulseira/No pescoço um medalhão/Cabra com esse jeitim/No sertão de meu Padim/Cabeludo tem vez não;.
Chegamos ao loteamento, que ficava em um descampado, o vento assobiava, levantando a poeira e formando redemoinhos que varriam o chão de terra vermelha. Duvidei de que houvesse show naquelas condições. Mas Gonzagão explicou firme: ;Claro que vai ter show. Eu sou lá de Novo Exú, que fica onde o vento encosta o cisco;.
O que vi quando Luiz subiu ao palco foi uma performance impressionante. Ele era um teatro completo e dominava inteiramente o público com a autoridade de rei da música nordestina. Provocou gargalhadas quando cantou Respeita Januário e contou que, ao voltar para casa depois de 20 anos, em razão de uma desavença de família, bateu na porta de madrugada e anunciou: ;É Luiz, seu filho;. O velho Januário respondeu fulminante: ;Isso é hora de voltar para casa, seu corno?;
Fiquei também admirado com a homenagem pungente e espirituosa que prestou ao jumento, animal desprezado e tão essencial aos nordestinos desvalidos do sertão. É preciso ser um cabra muito macho para cantar: ;O jumento é o maior desenvolvimentista do sertão/O jumento é nosso irmão;. É algo de uma grandeza digna de um São Francisco de Assis.
Caetano Veloso escandalizou o país ao declarar, na década de 1960, que Luiz Gonzaga era o maior gênio da música popular brasileira. Antes de Caetano (;eu tomo uma Coca-Cola, ela pensa em casamento;), Gonzaga colocou Coca-Cola em uma canção popular, em Dois siris jogando bola: ;Vi um elefante/cozinhar na caçarola/Almoçar todo frajola/E a dentuça palitar/Vi um jumento beber 20 Coca-Cola/Ficar cheio que nem bola/E dar um arroto de lascar;.
Meu pai adorava Luiz Gonzaga e, quando o Rei do Baião morreu, ele fez uma homenagem tocante, numa paródia da Canção do Vaqueiro: ;O Nordeste brasileiro suspirou de emoção/Quando vagou a notícia/Morreu o Rei do Baião/Nunca mais tua voz ouvirão/Meu irmão;.