Jornal Correio Braziliense

Cidades

Crônica da Cidade

Óculos perdidos

Um vexame. Um homem de 36 anos chora na beira da praia porque perdeu os óculos no mar. As lágrimas escorrem sem controle. A mulher o abraça. Tenta tranquilizá-lo sem compreender como um problema corriqueiro tomou dimensões dramáticas. Sabe-se lá quanto tempo passeou submerso, de olhos abertos, torcendo por um reflexo do sol que denunciasse as lentes parcialmente enterradas na areia sob as águas. Tomava fôlego e voltava para o mundo silencioso e turvo. Deixava que o vai e vem o arrastasse enquanto tateava em busca das pernas de metal que apontavam para cima, como mãos que pediam socorro entre montes de sargaço. Até ser retirado da situação pela esposa.

Horas depois do transtorno, após o jantar, parentes ainda saíram à noite, aproveitando a maré baixa, com as lanternas dos celulares acesas, sob as estrelas, percorrendo bancos de areia entre pequenos siris pálidos e fugidios, em busca dos óculos perdidos. Dos meus óculos. Aquela perda representava um dinheiro a mais que eu não poderia gastar? Ok. Tem solução. Era um objeto estimado? Tudo bem, mas apenas um óculos. Uma haste de metal e duas lentes que as ondas levaram. Para que tamanho drama? Tamanho celeuma?

O motivo do choro à beira mar estava há anos de distância do fato. Em uma história que chegou ao fim recentemente. Quando meu pai morreu, por algum motivo, dei início a uma intensa busca por memórias. Revirava dentro de mim a confusão da escrivaninha de meus pensamentos. Era como se quisesse, a partir de lembranças que insistem em surgir apenas espontaneamente, criar um manual da vida ao alcance da mão. Um conjunto de regras que me desse segurança e, de alguma forma, mantivesse meu velho ali comigo. Tinha medo do que poderia acontecer, tinha medo de não me lembrar.

Compartilho com vocês um costume do velho Gabriel. Aos pequenos incidentes da vida, ele costumava atribuir significados e perguntas simbólicas que nos levassem a refletir sobre a vida. O fato em si, uma batida na traseira de um carro, uma carteira desaparecida, um porre na véspera da prova ou um boletim de notas baixas eram menos importantes que a reflexão em si. Poderia questionar, por exemplo, no momento em que perdi os meus óculos, o que em minha vida eu não queria enxergar. E foi exatamente o que eu pensei. O que meu pai diria? Perguntaria sobre o que eu não queria enxergar.

Essa imagem me veio em um flash, antes que eu deixasse o mar, ainda durante a busca. Achei inadmissível. Me irritei como antigamente, como se ele ainda estivesse ali, me forçando a refletir sobre os acontecimentos, as variáveis que me levaram até o incidente e onde o imprevisto poderia me levar se eu o observasse com atenção. Inquirindo-me sem levar em conta minha frustração. Como filho, eu não podia admitir. ;Eu quero ver;, repeti pra mim. ;Quero ver tudo;, insisti. ;Prefiro a dura realidade;, reafirmei. E de repente, vencido pela miopia que nunca desejei, sem conseguir explicar, me vi desnorteado, procurando meu pai, nas águas salgadas, sabendo que jamais veria a vida da mesma forma. Gabriel havia partido há algumas semanas, mas estava ali, no meu modo de pensar, que aprendi com ele. Uma lente ante minha percepção de mundo. E quando nos abraçamos, não era pelos óculos que eu chorava.