Palhaço na noite
Como se sabe, eu sou um usuário, não disso que vocês estão pensando, mas do sistema de transporte público da cidade. Quem trafega de ônibus vê e vive muitos acontecimentos inesperados. Voltava para casa quando observei que um palhaço havia embarcado e iniciou um movimento. Imaginei que fosse realizar algum espetáculo. Mas parece que tinha outros planos.
Ele carregava um saco de pirulitos vermelhos em forma de coração e passou a distribuir o mimo para os passageiros em meio a facécias: ;Para ninguém brigar ou se sentir melindrado, vou presentear a todos;. Algumas moças do fundão ensaiaram brincadeiras maliciosas com o pirulito: ;Pode chupar?; E o palhaço tirou de letra a provocação: ;Olha, vocês fazem o que quiserem, mas eu não tenho nada a ver com isso. O palhaço leva a culpa de tudo. Muito cuidado. Depois, vão dizer que a culpa é do palhaço;.
Uma outra moça morena se virou para acompanhar o que acontecia na direção do palhaço. Ágil, ele desencadeou uma conversa com a espectadora: ;Acho que você está me reconhecendo. Eu também te conheço de algum lugar. Ah, agora me lembrei! A gente se conhece da penitenciária, da Papuda;. A moça dobrou-se na gargalhada.
O palhaço era educado e elegante, embora irreverente, com a verve engatilhada na ponta da língua. Se fizesse uma brincadeira e não encontrasse receptividade, logo partia para outra, sem tornar-se inconveniente. De repente, ele pediu um minuto de atenção e explicou que realizava um trabalho em hospitais para alegrar o cotidiano dos pacientes. Mas precisavam de grana para bancar as ações.
Com habilidade e leveza, transformava os instantes mais constrangedores em graça. Armado de senso do espetáculo, fez um discurso persuasivo para justificar a presença no ônibus: ;Gente, quando eu entrei aqui, aposto que vocês pensaram assim: ;Lá vem mais um fazendo uma tremenda encenação para, no fim, pedir dinheiro da gente;. Pois vocês acertaram. Eu queria que vocês me ajudassem com o que pudessem. Aceito qualquer moeda e não tenho nenhum preconceito com dinheiro de papel;.
Era um legítimo artista popular, que não se embaraçava com nenhuma armadilha ou casca de banana colocada em seu caminho: ;Tem um momento constrangedor nesta história, é a hora de recolher o dinheiro. Pois eu queria dizer a vocês que eu adoro esse instante;. Depois de amealhar as moedinhas em um saco e desanuviar o ambiente, o palhaço agradeceu, recomendou que todos fossem com Deus, desceu do ônibus e sumiu na escuridão da noite brasiliana.