Jornal Correio Braziliense

Cidades

Crônica da Cidade

Palhaço na noite

Como se sabe, eu sou um usuário, não disso que vocês estão pensando, mas do sistema de transporte público da cidade. Quem trafega de ônibus vê e vive muitos acontecimentos inesperados. Voltava para casa quando observei que um palhaço havia embarcado e iniciou um movimento. Imaginei que fosse realizar algum espetáculo. Mas parece que tinha outros planos.

Ele carregava um saco de pirulitos vermelhos em forma de coração e passou a distribuir o mimo para os passageiros em meio a facécias: ;Para ninguém brigar ou se sentir melindrado, vou presentear a todos;. Algumas moças do fundão ensaiaram brincadeiras maliciosas com o pirulito: ;Pode chupar?; E o palhaço tirou de letra a provocação: ;Olha, vocês fazem o que quiserem, mas eu não tenho nada a ver com isso. O palhaço leva a culpa de tudo. Muito cuidado. Depois, vão dizer que a culpa é do palhaço;.

Uma outra moça morena se virou para acompanhar o que acontecia na direção do palhaço. Ágil, ele desencadeou uma conversa com a espectadora: ;Acho que você está me reconhecendo. Eu também te conheço de algum lugar. Ah, agora me lembrei! A gente se conhece da penitenciária, da Papuda;. A moça dobrou-se na gargalhada.

O palhaço era educado e elegante, embora irreverente, com a verve engatilhada na ponta da língua. Se fizesse uma brincadeira e não encontrasse receptividade, logo partia para outra, sem tornar-se inconveniente. De repente, ele pediu um minuto de atenção e explicou que realizava um trabalho em hospitais para alegrar o cotidiano dos pacientes. Mas precisavam de grana para bancar as ações.

Com habilidade e leveza, transformava os instantes mais constrangedores em graça. Armado de senso do espetáculo, fez um discurso persuasivo para justificar a presença no ônibus: ;Gente, quando eu entrei aqui, aposto que vocês pensaram assim: ;Lá vem mais um fazendo uma tremenda encenação para, no fim, pedir dinheiro da gente;. Pois vocês acertaram. Eu queria que vocês me ajudassem com o que pudessem. Aceito qualquer moeda e não tenho nenhum preconceito com dinheiro de papel;.

Era um legítimo artista popular, que não se embaraçava com nenhuma armadilha ou casca de banana colocada em seu caminho: ;Tem um momento constrangedor nesta história, é a hora de recolher o dinheiro. Pois eu queria dizer a vocês que eu adoro esse instante;. Depois de amealhar as moedinhas em um saco e desanuviar o ambiente, o palhaço agradeceu, recomendou que todos fossem com Deus, desceu do ônibus e sumiu na escuridão da noite brasiliana.