Jornal Correio Braziliense

Cidades

Crônica da Cidade

Amor amputado

Meu irmão sempre foi meu melhor amigo, por isso, sempre andamos juntos. No início da juventude, num período em que nenhum dos dois estava namorando, costumávamos bater ponto todo fim de semana na 109 Sul, a comercial que se iniciava no Beirute e terminava no Estação, passando pelo Arabeske e Bar do Luiz, que só enchia depois das 2h e expulsava os clientes às 6h, jogando água e sabão no chão e ameaçando lavar também nossos sapatos.

Certa noite, alguém que havia nos conhecido havia pouco tempo, surpreendeu-se ao ficar sabendo que éramos irmãos. ;Achei que fossem um casal;, disse, nos fazendo rir, surpresos. Perguntamos por que a pessoa tinha aquela impressão. ;Ah, vocês não se parecem nem um pouco, sempre tão juntos e, no fim da noite, discutem se já é hora de voltar pra casa. E tão sempre no Beirute.;

Fazia sentido, admitimos. Ju e eu não somos parecidos. Enquanto 99,9% dos meus genes parecem ter vindo da família do meu pai, ele parece ter herdado a mesma proporção do lado da minha mãe. E o Beirute sempre foi o bar que aceita a diversidade. Já me sentei até com gente preconceituosa pra dedéu ali, para a cara leitora e o caro leitor verem como todo muito acha lugar naqueles bancos de madeira desconfortáveis, mas superacolhedores.

Hoje, no entanto, quando me lembro desse episódio, fico abismado com o fato de nem a pessoa, nem eu e meu irmão ou qualquer de nossos amigos ter achado absurdo alguém imaginar que duas pessoas que nunca dão as mãos nem se beijam sejam um casal. E não pensamos isso porque, ainda hoje, muitos gays e lésbicas evitam demonstrar afeto em público por receio, não só de enfrentar olhares ou palavras de reprovação, mas de ser vítima de violência física mesmo.

Dois irmãos podem ser confundidos com um casal porque, tristemente, casais formados por dois homens ou duas mulheres, quando estão em público, sentem medo de se comportar como casal e fazer todas aquelas coisas deliciosas que adoramos fazer com nossos amores: andar de mãos dadas; fazer cafuné; sentar lado a lado repousando a mão sobre a perna do companheiro; e abraçar olhando nos olhos e sorrindo, antes de beijar na boca.

Na última quarta-feira, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado deu um passo avante na longa luta contra esse tipo de discriminação, incluindo a homofobia na lei que pune o racismo. Segundo a mudança, se torna crime, punível com um a três anos de reclusão, ;impedir ou restringir a manifestação razoável de afetividade de qualquer pessoa em local público, ressalvados os templos religiosos;.

Ainda é pouco, porém. Nada garante que o Congresso dará continuidade à tramitação da medida. Tanto que, no dia seguinte, seis ministros do Supremo Tribunal Federal se manifestaram pela criminalização da homofobia, argumentando que cabe à Corte decidir sobre o tema porque o Parlamento insiste em se omitir. O julgamento acabou interrompido, para ser retomado em duas semanas. Talvez, até lá, o Legislativo acorde e mostre que o Brasil deixou, pelo menos na lei, de achar normal o amor amputado pela violência.