Fernando Jordão
postado em 30/04/2019 06:00
Benício Oton de Lima, 67 anos, tem três filhos e cinco netos. Por coincidência, há duas gêmeas entre eles. As meninas completaram dois anos. Há um ano e quatro meses, porém, ele divide as atenções entre a família e as irmãs Lis e Mel. Foi em janeiro de 2018 que ele conheceu as siamesas, que, àquela altura, sequer haviam nascido. Em 3 de janeiro, a equipe do Hospital Materno-Infantil de Brasília (Hmib) diagnosticou o caso e acionou o neurocirurgião. Quinze dias depois, ele conheceria os pais das crianças e assumiria o maior desafio da carreira.
Quando jovem, Benício nem pensava em ser médico. O pai trabalhava como contador do Banco do Brasil, em Natal (RN), quando recebeu uma oferta para ser gerente de uma agência em Jacobina (BA). Na cidade do interior baiano, Benício nasceu e passou a primeira parte da infância em uma casa com 11 pessoas. Quando ele e os irmãos começaram a crescer, veio a necessidade de se mudarem para um município com mais opções de escolas e faculdades. A recém-inaugurada Brasília ; a quase 1,3 mil quilômetros de distância ; surgiu como alternativa. Em 1962, Benício, então com 10 anos, chegava à capital.
A escolha pela medicina veio por influência dos pais. ;Não tinha aquele sonho de ser médico. Fui na onda. Antigamente, você era médico, engenheiro ou advogado. Aí, fui fazer medicina;, lembra. Em 1974, formou-se pela Universidade de Brasília (UnB) e fez residência no Hospital de Base do DF. Durante o curso, interessou-se pela neurocirurgia. Ao exercer a profissão, começou a, espontaneamente, segundo ele, atender mais crianças do que adultos. Por causa disso, em 1988 ; 10 anos depois de formado ;, decidiu especializar-se em neurocirurgia pediátrica em Toronto, no Canadá.
Dessa importante decisão até o primeiro encontro com os pais das siamesas, passaram-se 30 anos. No período, Benício tornou-se uma referência em neurocirurgia infantil. Tanto que, segundo o anestesiologista Luciano Alves Fares, foi o neurocirurgião quem bancou a decisão de operar as gêmeas no DF: ;O doutor Benício participa de uma comissão que avalia crianças que nascem sem cérebro. Quando surgiu esse caso de craniópagos, ele foi chamado para responder se elas tinham cérebro ou não. Ele foi chamado para indicar um aborto terapêutico (em casos de estupro, morte iminente da mãe ou anencefalia) e falou: ;Tem cérebro, nasce e eu separo;;.
Decidido a fazer a complexa e inédita cirurgia, Benício começou a montar a equipe que trabalharia no caso e a buscar referências. A principal delas foi o norte-americano James Goodrich, que tem várias publicações sobre siamesas e, inclusive, havia ajudado outros casos aqui no Brasil. Foram cinco meses de preparação até o nascimento de Lis e Mel, em 1; de junho de 2018. ;Depois que elas nasceram, veio a parte do coração também, porque as meninas são muito fofinhas;, derrete-se o médico.
O afeto, contudo, precisou ser acompanhado de muita atenção até o momento da cirurgia de separação, no último sábado. Mesmo após o procedimento, Benício afirma que o trabalho não acabou: ;Eu costumo dizer que a cirurgia leva um mês para acabar. Não é quando você faz o curativo;. E a convivência com as crianças, então? Essa que não tem data para acabar: ;Provavelmente (vou acompanhar o crescimento das gêmeas). A família é muito amorosa;.
Adrenalina
O envolvimento tomou conta de toda a equipe médica. Líder da enfermagem na cirurgia, Carlos Eduardo da Silva, 34, conta que alguns colaboradores que estavam de férias pediram para ajudar no procedimento. ;Tenho 10 anos de formado e nunca vi tanta emoção ao redor de um caso;, revela. Pai de dois filhos, de 4 e 7 anos, Carlos Eduardo colocou-se no lugar de Camila e Rodrigo, pais das gêmeas. ;Prometi para mim mesmo que daria o meu melhor. O que eu pudesse oferecer, ofereceria. Enquanto não as vi no leito de UTI, acomodadas, separadinhas, bonitinhas, não descansei. Acho que, até agora, não descansei. O nível de adrenalina está muito alto. Levei para dentro do meu coração mesmo;, reconhece.
O médico Luciano Fares, 46, tem dois filhos. Uma delas decidiu escrever uma carta para as gêmeas. O especialista, que se define como ;chorão com fama de mau;, porém, não conseguiu ler até hoje. ;Ela colocou na minha maleta. Quando abri e vi, entreguei para a Camila. Ela também fez uma para mim, mas eu não quis ler;, conta.
O cirurgião plástico Ricardo de Lauro elenca dois momentos como os mais emocionantes: ;Primeiro, na hora em que a gente estava fazendo o curativo, finalizando o trabalho na parte cirúrgica, mas em duas macas diferentes. Até então, eu só tinha visto essas meninas juntas e, agora, elas estavam a 3m de distância uma da outra. Então, caiu a ficha. Separou. E o segundo momento, mais emocionante, foi presenciar o primeiro contato dos pais com essas crianças. Foi muito emocionante. Não tenho nem palavras;, emociona-se.
Norte-americanos
Referência mundial em gêmeos siameses, James Goodrich participou da cirurgia como apoiador, trazendo uma equipe composta pelo cirurgião plástico Oren Tepper, a anestesiologista Carlene Broderick e as enfermeiras Kamilah Dowling e Elyse Uppal. Todos vieram apenas com a passagem e a hospedagem pagas. Goodrich havia auxiliado outros procedimentos do tipo no Brasil. Um deles, em Ribeirão Preto (SP), para onde Benício Oton de Lima foi algumas vezes buscar informações na fase de pesquisa.