Cidades

Parto humanizado ajuda a aprofundar vínculo entre mãe e filho

Partos humanizados - que proporcionam acolhimento e segurança às mulheres - ajudam a aprofundar o vínculo entre mãe e filho

Bruna Lima
postado em 13/04/2019 07:00 / atualizado em 19/10/2020 17:05

Pela primeira vez, ela não entrou sozinha, se sentindo exposta em meio a tanta gente. Pela primeira vez, pôde segurar as mãos de quem confiava, enquanto sentia as dores se intensificando e se tornando cada vez mais frequentes ao passar das horas. Pela primeira vez, o tempo não foi um inimigo e a anestesia não foi o remédio. Somente ao ter o terceiro filho Gisele Oliveira Ferreira, 34 anos, viu a oportunidade de protagonizar o próprio trabalho de parto. “Eu me senti livre, totalmente acolhida e segura. Aquele era meu momento e não foi tirado de mim, nem nunca será.”

Do ventre, Davi Luca foi colocado direto nos braços de Gisele, antes mesmo que o cordão umbilical fosse cortado. A prioridade não foi o banho nem a pesagem. Em vez disso, o recém-nascido foi amamentado no colo da mãe. Todo o resgate ao processo fisiológico e natural do nascimento, muitas vezes posto em xeque com protocolos e intervenções médicas desnecessárias, tem nome e é garantido por lei. Ao respeito, acolhimento e garantia de segurança deu-se o nome de parto humanizado.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), 140 milhões de partos anuais são realizados em todo o mundo. A maioria — aproximadamente 85% — não apresenta nenhuma intercorrência. No entanto, uma pesquisa realizada pela revista científica The Lancet aponta que o número de cesárias praticamente dobrou em um período de 15 anos, passando de 16 milhões para 29,7 milhões de cirurgias. Isso representa, proporcionalmente, um aumento de cesarianas de 12% para 21%.
 
 
 
De acordo com o estudo, o crescimento se deu justamente pela adoção à cirurgia, mesmo sem indicações. No Brasil, o número é ainda mais preocupante. Mais da metade das gestantes são submetidas a cesáreas (entre 55% e 56% dos casos), fazendo com que o país ocupe a segunda posição em números de cirurgias — ficando atrás apenas da República Dominicana, com a diferença de três pontos percentuais.

Devido ao crescimento das interferências da equipe médica, que acabavam desvirtuando a naturalidade do parto, a OMS elaborou 56 recomendações para indicar o que é necessário durante o processo. Entre as exigências, estão a presença de um acompanhante, o respeito ao tempo, à dor e à posição de expulsão escolhida pela gestante. As diretrizes têm como base constatações científicas obtidas por meio de pesquisas realizadas no mundo todo.

O Ministério da Saúde segue as recomendações, implementando no Sistema Único de Saúde (SUS) a Rede Cegonha. No Distrito Federal, o protagonismo da gestante e a garantia de direitos no momento do parto alcançam o nível de lei. Para Gisele, no entanto, ainda há muito o que avançar em relação à humanização do parto na cidade. “No nascimento das minhas duas primeiras filhas, o desamparo, a falta de sensibilidade e de opção de escolha foram nítidos, mesmo sendo partos normais realizados em hospitais públicos. Percebo o esforço em mudar esse quadro, mais sei que a experiência que pude ter no parto do Davi ainda é uma exceção”, pondera. Para dar à luz o terceiro filho, Gisele foi atendida na Casa de Parto de São Sebastião.

Sabrina Viana Cruz e o marido Jonas de Oliveira com as filhas Júlia e Liz: as duas nasceram na Casa de Parto de São Sebastião

Referência


Única unidade de saúde do DF que só realiza partos normais somente com enfermeiros e técnicos obstetras, a Casa de Parto de São Sebastião é referência na capital. Em 10 anos de funcionamento sem a participação de médicos, o local realizou 3.537 partos.

“Apesar de não ser um hospital, a unidade conta com todos os aparelhos de monitoramento necessários e profissionais capacitados. No caso de qualquer intercorrência, a equipe presta os primeiros socorros e encaminha a paciente de ambulância ao hospital de referência, o Paranoá”, explica a chefe da unidade, a enfermeira obstetra Jussara Vieira, 47. Para garantir a devida segurança da mãe e do paciente, são aceitas somente gestantes de risco habitual, ou seja, mulheres que não apresentam nenhuma doença como pressão alta, diabetes ou que sejam obesas. Além disso, o feto não pode estar em posições anômalas (sentado ou na transversal, por exemplo).
 
 

Vanessa Silva Soares, 19, decidiu confiar a primeira experiência de parto aos profissionais da casa. “Eu não imaginava que seria tão doloroso ter um filho, mas todo o sofrimento passou só de vê-lo e senti-lo nos meus braços. Essa foi a experiência mais linda e significativa que eu já vivi e posso afirmar que ter gente que te trata com carinho, zelo e dedicação faz toda a diferença.”

Foi buscando gerar essa sensação para diversas mães que a enfermeira Débora Oliveira Santos, 28, se especializou em obstetrícia e hoje realiza diversos partos na casa de São Sebastião. “Respeito, cuidado e acolhimento permitem o resgate da vivência do parto como algo maravilhoso, um milagre de vida. E esse tratamento faz toda a diferença na vida da família”, diz. Para ela, pacientes que viveram violências obstétricas sofrem marcas que podem, inclusive, influenciar na relação parental. “O parto, quando marcado por uma experiência traumática, pode ser a causa de um distanciamento entre mãe e filho. Nós, profissionais, precisamos ter consciência disso e entender a importância do nosso papel no futuro dessas pacientes.”

A qualidade no atendimento na casa de parto faz com que a unidade seja procurada, inclusive, por quem não depende da rede pública de saúde. Foi o caso da bancária Sabrina Viana Cruz, 32 anos, que teve as duas filhas — Júlia, de 5 anos, e Liz, de 1 ano — na Casa de Parto de São Sebastião. “Percebi que várias mulheres que começavam com a ideia de ter um parto normal acabavam mudando de opinião ao longo da gestação. Li muito sobre o assunto e comecei a entender que a escolha pela cesariana vinha não só das mães, mas das influências dos próprios médicos de confiança.” Dados mais recentes indicam que mais de 87% dos partos realizados em hospitais particulares foram por meio de cesáreas, enquanto na rede pública o índice era superior aos 37%.
 

Tomada de consciência

 
Para a médica obstetra e membro da Associação de Ginecologia e Obstetrícia do Distrito Federal (SGOB) Lucila Nagata, apesar dos índices, uma onda de esclarecimento vem guiando a sociedade para esta nova tendência ao estímulo de volta ao parto natural. “As pacientes não aceitam ser conduzidas cegamente e tudo precisa ser bem explicado. Para isso, contamos com instrumentos eficientes para avaliar se o trabalho de parto está evoluindo bem ou não. É necessário o incentivo ao parto adequado, desde que garantinda a segurança”, afirma.

Em caso de indicação de uma cesária de fato necessária, Lucila garante que este novo contexto não pode deixar de ser respeitado. “Todo parto deveria ser humanizado, de forma a manter, ao máximo, o vínculo entre mãe e filho.”

Com o objetivo de expandir a assistência fornecida às gestantes de São Sebastião para as demais regiões do DF, a Secretaria de Saúde planeja criar casas de parto próximas a hospitais da rede, para facilitar o atendimento à parturiente e ao recém-nascido em casos de intercorrências. A previsão mais avançada é a construção do Centro de Parto Normal em Brazlândia, ainda na fase de projeto.

Assim como na Casa de Parto de São Sebastião, outras três unidades de saúde do DF prestam auxílio aos partos sem médicos para as gestantes de baixo risco. Os hospitais regionais de Ceilândia (HRC) e da Asa Norte (Hran) e o Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib) contam com uma equipe de enfermeiros com especialidade em obstetrícia para assistir ao parto. No HRC, há um espaço próprio para realizar o procedimento apenas com métodos naturais para o alívio das dores, por exemplo. Entre as alternativas estão as massagens, uso da bola e a oferta do banho.

Outras unidades de saúde também contam com enfermeiros obstétricos, somando 124 profissionais. Segundo a Secretaria de Saúde, todos os hospitais do DF oferecem o parto humanizado — com exceção do Base, que não tem maternidade. O coordenador de Ginecologia e Obstetrícia da pasta e médico-obstetra Roberto Cavalcanti alerta que tanto a rede pública de saúde quanto a privada precisam trabalhar em consonância com as leis e diretrizes que visam deixar de lado a cultura da medicalização para retomar a naturalidade da vida.

“Os três principais aspectos a se trabalhar são a autonomia, a assistência acolhedora e a garantia de segurança. A mulher pode parir como quiser e onde quiser, desde que assistida por profissionais capazes de lidar com a imprevisibilidade do momento e atuar de maneira rápida, eficiente e respeitosa”, observa.
 
  

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