Ricardo Daehn
postado em 30/03/2019 07:00
Na ausência do som reside a importância específica do fator visual na construção de linguagem de um grupo por trás da organização da 1; Mostra Surdo Cinema, exibida a partir de hoje, com entrada franca, no Cine Brasília (EQS 106/107). Em oficinas, desde agosto passado, com exames de roteiro, direção, figurinos, direção de arte, alunos surdos tomaram as rédeas do fazer artístico. Quatro curtas-metragens compõem a mostra. Nas futuras edições, os teatros do Sesc recebem os filmes: em Taguatinga, em 3 de abril, e Ceilândia, em 5 de maio.
Mais de 90% dos talentos dos filmes são surdos e, além de expressado em língua de sinais, os títulos contam com legendas audiodescritivas. Mais de 150 pessoas se interessaram pela oportunidade de serem integradas ao projeto, que formou, após seleção, duas turmas com 20 pessoas cada. Um edital do Fundo de Apoio à Cultura (FAC) injetou R$ 49 mil na realização, cuja programação tem chance de estar no Aniversário do Guará ; celebrado em 5 de maio ; e de circular pelo Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. ;É um trabalho muito novo e gratificante;, conta William Tomaz, um dos arte-educadores que, ao lado de Lucas Rafael e Cristiano Gomes, idealizou o evento.
A idade dos alunos varia de 18 a 35 anos. As aulas foram elaboradas na Associação de Pais e Amigos de Deficientes Auditivos (Apada), situada no Conic. Nos filmes, a ficha técnica entrega o espírito colaborativo do grupo, com as pessoas se alternando em funções diversificadas.
Assim como deficientes auditivos muitas vezes se veem distanciados da cultura que envolve a Língua Brasileira de Sinais (Libras), os surdos se notam apartados do protagonismo no meio cultural. ;Algumas demandas, muitas delas coletivas, partiram da representação de artistas como Núbia Laismann e Amanda Bispo. A visibilidade de estar em horário nobre, no berço do cinema brasileiro que é o Cine Brasília, é algo muito importante;, avalia o arte-educador.
William Tomaz conta até de uma decepção de alunos que, almejando inserção no mercado antes de participaram do curso, tiveram por resultado a indignação. ;Alguns viram que as seleções para elenco estavam blindadas. Os artistas surdos foram levados em conta apenas para serem consultores dos atores;, relata.
Inclusão
Mostrar para a sociedade a importância da presença dos surdos no mercado artístico, com direito a reconhecimento profissional e respeito, é um dos desejos do diretor de cinema Johnnatan Albert, que explica o objetivo com seu trabalho nos bastidores do curta Libras é merda?: ;Gostaria que todos conhecessem mais a cultura surda como propagada por nossa língua materna, a Libras. Somos uma comunidade muito acolhedora;.
A divulgação dos curtas no projeto, segundo ele, é um experimento da realidade social enfrentada pela comunidade surda. Johnnatan comemora: ;A minha história, de quanto eu sofri discriminação e exclusão por ser surdo, agora é contada em telonas do cinema, graças ao projeto;.
Representatividade e inclusão, pela projeção da mostra, se aliam a mais um fator, na visão da diretora Pammelleye Katherinne. ;Quero maior interação entre surdos e ouvintes. Com a iniciativa, foi aberto um desafio para experiências em várias instâncias das artes. É como antecipar o futuro da acessibilidade e tornar cada vez mais adequada a realidade dos surdos que sonham. Esperamos que a sociedade do Brasil, como um todo, siga o exemplo;, comenta.
Urgência em comunicar
A possibilidade de integrar a programação do Festival de Curtas-Metragens da cidade ou mesmo de estar no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro anima o grupo. ;No conjunto de filmes, temos, por exemplo, o curta Libras é merda?, que mistura língua de sinais à língua portuguesa. Fala do desentendimento de uma moça que pensa que um surdo foi agressivo com ela. Já A boneca de sangue fala dos recursos muito limitados de denúncia, quando uma vítima de violência é surda. No Não me toque há configuração de uma tentativa de abuso sexual;, comenta o professor William Tomaz.
;Os surdos são talentosos e, muitas vezes, conseguem superar o obstáculo da comunicação, pois a visão deles é muito aprofundada em relação aos que ouvem e, por isso, conseguem desempenhar perfeitamente o seu trabalho em qualquer área, inclusive no cinema;, observa a diretora Renata Rezende. ;Acho que o projeto é inovador, pois desenvolvemos uma história de esforços e aprendizado que será continuada pela comunidade surda;, comenta a colega dela, a também realizadora Michelle Hitomi.
Mostrar a possibilidade de que a Libras seja inserida em qualquer mídia foi uma das metas de Renata, à frente do curta O corpo da liberdade. ;É um momento importante destacar que o projeto mudou a vida dos profissionais surdos. Enxergamos o cinema não apenas como meio de entretenimento, mas ainda como uma paixão, tornando isso acessível, em Libras e legendas. É um desafio interessante e enorme, porque são apoiados dois idiomas nos curtas: o português e a Libras;, reforça.
Anote
1; Mostra Surdo Cinema Cine Brasília (106/107 Sul; 3244-1660) Hoje, às 20h, com exibição de quatro curtas-metragens. Não recomendado para menores de 16 anos. Entrada franca.
Os curtas
Libras é merda?
O desconhecimento de idioma e a comunicação truncada dão as cartas no filme. Direção, roteiro, fotografia e operação de câmera a cargo de Johnnatan Albert.
Não me Toque
Alice convida casal de amigos para a piscina. Mas nem tudo é perfeito. Direção, roteiro e edição: Pammelleye Katherine.
A boneca de sangue
Ana apela para os músculos a fim de se livrar da violência. Direção, direção de arte e edição Michelle Hitomi. Codireção: Luérgio de Souza.
O corpo da liberdade
Uma boate será cenário para confluência de crises: de relacionamento amoroso, de relacionamento profissional e de segredos que ficariam melhores esquecidos. Direção e atuação de Renata Rezende.