O nível de crueldade contra a vida de mulheres tem alarmado a população do Distrito Federal. Na última semana de janeiro, dois novos casos de feminicídio reforçaram os questionamentos sobre os motivos para que esse crime se repita com tanta frequência. A vítima mais recente foi a servidora aposentada da Secretaria de Educação Veiguima Martins, 55, morta pelo marido, José Bandeira e Silva, 80. Ele matou a companheira a facadas e, depois, ateou fogo ao apartamento no qual viviam, na 310 Norte.
Quatro dias antes, Diva Maria Maia da Silva, 69, foi assassinada a tiros pelo companheiro, Ranulfo do Carmo Filho, 72 (leia Memória). Os casos registrados em janeiro bateram recorde na média histórica para o período nos últimos quatro anos, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP/DF). Ao todo, foram quatro ocorrências registradas. Para a coordenadora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea), Masra de Abreu, esses índices demandam um entendimento sobre o momento vivido em todo o país.
Na opinião da especialista, os discursos políticos têm funcionado como forma de legitimação da violência. Aliado a isso, ela observa o desmonte ;quase completo; das políticas públicas de combate à violência. ;As mulheres estão voltando a um tempo em que a crença no poder público para protegê-las tem ficado mais fraca. E o poder público está se retirando desse papel;, analisa. ;Isso, aliado a um discurso conservador e fundamentalista de boa parte dos políticos, corrobora o processo da violência;, acrescenta.
Masra cita decisões recentes que podem aumentar os casos de morte de mulheres em virtude da condição de gênero. Entre elas, estão a flexibilização da posse de arma e as proposições que tramitam no Congresso Nacional para desconstrução da Lei Maria da Penha. ;A construção dessa lei foi muito emblemática, porque oferece um arcabouço jurídico. Os serviços de atendimento especializado nesses casos estão ficando cada vez mais frágeis. E temos um Estado em que a violência está liberada e as políticas públicas têm acabado;, observa. ;Em relação à posse de armas, temos indicadores de que as mulheres são as que mais vão morrer. É falácia liberar a posse no intuito de autoproteção;, reforça.
Desde 2016, as ocorrências de feminicídio em janeiro têm aumentado em um caso a cada ano (leia Crescimento). Os índices passaram a ser contabilizados desde março de 2015, com a sanção da Lei n; 13.104. Segundo a advogada Lúcia Bessa, presidente da Comissão Especial de Combate à Violência Familiar da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Taguatinga, a norma é reconhecida, eficaz e nova. Apesar disso, ela não tem sido suficiente para coibir novos casos.
Faixa etária
Lúcia também considera que os casos mais recentes revelaram a realidade de submissão de mulheres desde a juventude até a velhice. ;Isso tem nos mostrado que a violência não tem cara, não distingue classe social nem geracional. Essas mulheres estão sofrendo desde a tenra idade. Cada vez mais, homens estão nos dizendo que não importam as leis, medidas protetivas, porque é como se a nossa vida pertencesse a eles;, afirma.
Lúcia salienta a necessidade de chamar a atenção para a responsabilidade de cada indivíduo. Ela considera que ainda há um longo caminho a ser percorrido para oferecer uma rede de acolhimento adequada às vítimas e para garantir que agressores se mantenham longe delas. ;Temos a Casa da Mulher Brasileira fechada, apenas uma Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) em funcionamento, equipamentos públicos com deficit de servidores e uma Justiça machista e tardia. É um quadro aterrador;, reforça a advogada. ;Ninguém está cumprindo o próprio papel. Se todos nós estivéssemos cumprindo nossas obrigações e responsabilidades, não teríamos esses índices alarmantes.;
Medidas urgentes
Secretária da Mulher, Ericka Filippelli reconhece a necessidade de construção de estratégias para facilitar o acesso das vítimas a serviços de acompanhamento e a meios de denúncia. Uma das propostas da pasta, segundo ela, é promover campanhas de incentivo para que as mulheres denunciem casos de violência. Além disso, parcerias com a SSP/DF estão previstas para garantir a reabertura de delegacias e o funcionamento delas 24 horas por dia. ;Temos de prepará-las para acolher essas mulheres e vamos trabalhar para descentralizar o atendimento da Casa da Mulher Brasileira. Estamos em articulação com outros parceiros, como o Tribunal de Justiça, o Ministério Público e as forças de segurança;, comenta.
De acordo com Ericka, o governador Ibaneis Rocha (MDB) sugeriu a abertura de uma casa em Ceilândia e a secretária participou de reuniões com a Secretaria de Obras para desenhar o projeto. ;Fora isso, precisamos fortalecer os Centros Especializados de Atendimento à Mulher. As pessoas não conhecem, não sabem onde ficam. Estamos identificando falhas desses equipamentos para corrigi-las o mais rápido possível com pessoal e estrutura;, diz. A secretária adiantou, ainda, que há projetos previstos para lançamento, no mês de março, para encaminhamento de políticas públicas eficientes no combate a esse tipo de violência.
Memória
4 de janeiro
O primeiro feminicídio do ano aconteceu na Quadra 9 do bairro Engenho Velho, na Fercal. Moradores da região acionaram as polícias Civil e Militar para atender a um caso de assassinato. Ao chegarem, as equipes encontraram o corpo de Patrícia Alice de Souza, 23 anos, atingida por tiros nas costas. Segundo depoimento de familiares, a vítima estava desaparecida havia três dias. A Polícia Civil não deu detalhes sobre as causas nem divulgou nomes de suspeitos. No entanto, investigadores da 35; DP (Sobradinho 2) trabalham com a hipótese de feminicídio e ainda apuram o caso.