Mariana Machado
postado em 14/12/2018 06:00
Aos 17 anos, veio a primeira crise na vida de Miriam Regina Machado. Perder a mãe a fez se sentir tão abandonada que ela caminhou por dias ; tantos que perdeu a conta ; pela BR-060. Foi de Brasília até o município de Paragominas (PA) ; distância de aproximadamente 1,6 mil km. Naquele momento, começava a conviver com o transtorno bipolar. Hoje, aos 53 anos, coleciona praticamente uma internação por ano, em diferentes sanatórios do país, onde viveu experiências difíceis. A partir de 2012, porém, a amizade com o psicólogo Daniel Goulart deu partida a uma nova forma de encarar a doença. O fruto da parceria foi o livro de crônicas A alma por trás do transtorno bipolar, lançado em setembro de 2018, e com a primeira tiragem esgotada.
Na primeira internação, em Belém, ela ficou em uma sala tão cheia que mal podia se mexer. ;Ficava prensada por três horas contra grades de vergalhão. Lembro das marcas no meu braço;, descreve. Foram poucos dias por lá, até que a avó foi buscá-la. Voltou a Brasília, e acabou internada novamente. ;Vivi uma vida sofrida, mas me considero uma vencedora. Não por ter sobrevivido a todas essas internações, mas pela forma como vejo as coisas hoje;, avalia.
Ainda aos 17, conheceu o marceneiro Reinaldo Fonseca Nunes de Oliveira, com quem se casou oito anos mais tarde e teve três filhos: dois meninos e uma menina. A parceria e o apoio da família foram fundamentais para Miriam. Hoje, eles moram em Alexânia, cidade no interior de Goiás, a cerca de 88km da capital federal. Mesmo com a batalha constante pela própria saúde mental, nunca ficou parada. É professora aprovada em concurso pelo estado e pelo município. Deu aulas para crianças e adolescentes, mas está afastada por conta da doença. Antes de entrar em crise, já identifica os sinais: fica muito agitada, zanga-se rapidamente e não consegue dormir.
Hoje com 64 anos, o marceneiro não tem arrependimentos da vida ao lado da companheira. ;Ninguém está muito longe da loucura nessa vida atribulada que levamos. A linha é muito tênue entre uma pessoa que se diz equilibrada e alguém com problemas como os da Miriam;, avalia Reinaldo. ;A felicidade está dentro de você e do que você produz. O que está a sua volta vai te dar essa satisfação, desde que seja bem cuidado, especialmente quando você tem filhos. Manter a convivência familiar é a base de tudo;, conclui.
Abordagem diferente
Nem todas as internações trouxeram experiências ruins. Na mais longa delas, em um hospital de Taguatinga, ela passou sete meses. ;Todos os dias eu dava bom dia e cumprimentava uma das médicas. Ela resolveu pegar o meu caso e cuidar pessoalmente;, conta. De lá, Miriam foi encaminhada para o Centro de Assistência Psicossocial (Caps) de Taguatinga, onde conheceu o psicólogo Daniel Goulart, na época, fazendo a pesquisa de mestrado pela Universidade de Brasília (UnB).
Miriam estava prestes a receber alta quando teve mais um episódio e foi hospitalizada de novo. Daniel se interessou pelo caso e decidiu dar prosseguimento ao tratamento que era feito no Caps, dentro do hospital. ;A gente decidiu pensar aquilo como oportunidade, uma experiência na qual ela poderia refletir. Veio a ideia de ela começar a escrever o livro, e ali nasceu a primeira crônica;, explica Daniel. ;A saúde mental é um campo ainda muito fragmentado. Apenas a doença e o tratamento eram trabalhados, mas eu entendo que seja um processo de vida associado à cultura e à história de cada um.;
Depois de receber alta, ela passou a ser parte da pesquisa de mestrado e posteriormente de doutorado do psicólogo. ;No começo, não deu muito certo, ela não queria escrever. Então mudamos a metodologia: ela narrava as histórias e eu colocava no papel;, disse. Deu certo.
Para a paciente, o psicólogo foi um divisor de águas. ;Quando dizem que de médico e de louco todo mundo tem um pouco, é verdade. Quando você começa a falar que uma pessoa é doida, ela mergulha naquilo e se transforma no que o outro crê, a menos que você dê a ela a consciência de saber quem ela é. Às vezes estamos tão sós que não nos achamos;, acredita Miriam.
Diálogo aberto
As pesquisas de Daniel não pararam desde então. Hoje professor do Departamento de Psicologia do UniCeub, ele criou o projeto Saúde mental, educação e subjetividade, voltado para estudantes que queiram se aprofundar no assunto. Uma das ações do grupo é o CAPSine, em que professores, alunos e usuários dos Caps vão, uma vez por mês, até a universidade para ver filmes e participar de rodas de conversa, uma forma de dialogar com o contexto da saúde mental.
Outro trabalho é o Grupo de Ouvidores de Vozes, que se reúne no Taguaparque, voltado para pessoas que sofrem de esquizofrenia, psicose e outras condições que as façam escutar vozes. ;As alucinações auditivas não são necessariamente algo ruim. As vozes muitas vezes se tornam recursos, isto é, fonte de sabedoria. Os participantes trocam informações, e isso tem se mostrado algo muito potente na criação de vínculos;, explica Daniel.
Ele avalia que ainda há um estigma muito grande sobre doenças mentais. ;A gente avançou sobretudo com a implementação dos Caps, mas é uma política que hoje está muito ameaçada;, lamenta. ;Essas doenças ainda são vistas de uma perspectiva individualizada e biológica, como se a medicação fosse tudo. É importante, mas há outras abordagens. Antigamente, ser diagnosticado como doente mental era uma sentença de morte. Tratamentos eram higiene social;, conclui.
A estudante do 6; semestre Maria Luiza de Carvalho, 23, participa dos trabalhos e tem feito pesquisas em saúde mental, área onde pretende seguir carreira. ;O transtorno não pode ser visto como situação em que a pessoa é paralisada. Precisa ser encarado como processo de vida, e isso não é romantizar, mas entender que ele pode favorecer o desenvolvimento da pessoa. A desordem pode levar à ordem;, acredita.
Atendimento
No Brasil, o primeiro Caps foi implantado nos anos 1980, em São Paulo. Hoje, existem mais de 2,4 mil em todo o país, segundo dados do Ministério da Saúde, atendendo a adultos e crianças com transtornos mentais, dependentes de álcool ou drogas.