Na rua, todo mundo é público, seja criança ou adulto, mães, filhos, empresários ou sem-teto. Todos acabam sendo contagiados pelo palco aberto que se tornou as vias da capital. Não é muito difícil encontrar alguém nos semáforos soprando fogo, tocando instrumentos musicais, sendo estátuas humanas ou fazendo acrobacias e malabarismo. Músicos, atores, palhaços, acrobatas, malabaristas, artesãos e muitos outros costumam oferecer alegria e entretenimento nos trajetos rotineiros dos brasilienses.
Apesar do preconceito ainda ser uma grande barreira para os artistas de rua, e o retorno financeiro não ser muito, eles afirmam que é recompensador ganhar a vida transformando o dia a dia de outras pessoas. ;Eu amo o que eu faço, não importa o lugar, pode ser na Rodoviária, em paradas de ônibus, hospitais ou até cemitério, a reação das pessoas e a transformação que meu trabalho causa no dia delas me completa. Acho que, quando eu estou sem esse instrumento, eu sou invisível e, com ele, de alguma forma, estou contribuindo na vida das pessoas.; É assim que João Alves da Cruz, 48 anos, um saxofonista que escolheu as ruas como palco, define seu trabalho.
Após passar por uma depressão, por recomendação médica, buscava uma atividade para preencher o tempo livre. Foi então que, em 2008, ele conheceu o saxofone e começou a estudar freneticamente. ;Na verdade trabalhar e me apresentar nas ruas não foi uma escolha, simplesmente aconteceu. Quando eu comecei a treinar, fui convidado a me retirar do prédio, porque eu fazia muito barulho e os vizinhos estavam reclamando, ai eu tive que ir para a rua. Depois disso não parei mais. O contato com as pessoas na rua é uma troca de experiências muito enriquecedoras;, conta.
Moeda ou banana
Bombeiro reformado, por causa de problemas de saúde, João não tocava como profissão até o momento que recebeu a primeira gorjeta. ;Um dia, do nada, uma garotinha colocou uma moeda na caixa e na hora me veio na cabeça que eu ia fazer como profissão. Viver só disso é complicado, mas acaba que nos tornamos um outdoor ambulante, as pessoas nos veem e daí surgem convites e trabalhos em eventos;, acrescenta.
Ao longo dos anos, João colecionou muitas histórias, entre elas, a apresentação para Stevie Wonder, um dos maiores músicos da cena pop mundial. O bombeiro reformado almoçava com a esposa quando avistou o ídolo entrando em uma lanchonete na 205 Sul. João foi para debaixo de uma árvore e esperou pelo momento certo: ele pegou o saxofone e começou a tocar Garota de Ipanema. Quando o ídolo norte-americano o notou, não exitou em pedir uma gaita para acompanhar o saxofonista.
;Foi surreal, algo que eu nunca imaginaria que fosse acontecer. Depois ele ainda me deu US$ 200, mais do que eu teria pago para ir a um show dele. Mas o valor não é o importante, já ganhei bananas de um vendedor de frutas como gorjeta, era o que ele tinha e eu fiquei muito feliz com isso. As coisas pequenas também me marcam muito;, recorda com orgulho.
De acordo com ele, o preconceito ainda é uma barreira para artistas de rua, pois muitas pessoas os veem como mendigos ou acham que estão querendo esmola para comprar drogas, até sua família estranhou quando tomou a decisão de trabalhar tocando nas ruas. ;No começo isso me abalava, porque as pessoas estavam recebendo a mensagem errada, mas não são todas. Acho que é uma questão cultural e eu luto todos os dias para as pessoas perceberem que essa é uma forma de trabalho como outro qualquer;, ressalta o músico.
Assim como João, o saxofonista Paulo Celso não depende só do dinheiro que ganha nas ruas para se sustentar. ;Procuro fazer um pouco de cada coisa, o que aparece eu faço. Aqui na frente do shopping é mais divulgação cultural e pessoas que veem e gostam do meu trabalho e me contratam para eventos. Prestei um concurso para a banda militar, mas não fui chamado. Geralmente fico entre as cidades de Valparaíso, Brasília e Luziânia. Eu me lancei no desafio de ser músico, porque música é minha paixão. Toco mais de 10 instrumentos, mas o sax é o mais barato de manter e trabalhar. Existem pessoas que passam a vida querendo fazer o que eu faço e não têm coragem;, conta Paulo. Em Brasília é possível apreciar o trabalho do saxofonista na frente do Conjunto Nacional.
Diversidade
A arte de rua hoje é um berço de diversidade cultural. Em uma volta pela Plano Piloto é possível se deparar com artistas de diversas cidades do Brasil e de outros países desenvolvendo os mais diferentes tipos de trabalho, oferecendo aos moradores do DF uma experiência intercultural diferenciada. Os colombianos Fredy Vargas Soarez, 26 anos, e Carlos Nieto, 29 anos, são malabaristas e, por meio da arte, se conheceram em Brasília. Os amigos moram em um hostel na Asa Sul e vivem da arte, trabalhando na W3 Sul fazendo malabarismo.
A arte de rua envolve histórias de vida e de famílias. Fredy chegou a Brasília em maio deste ano com a esposa e dois filhos. O restante da família ficou na Colômbia. Ele tem 10 irmãos e hoje em dia não tem mais contato com eles. Diariamente, quem passa pela pista entre a 506/507 Sul pode encontrar Fredy fazendo malabares pendurado em uma corda que amarra entre um poste e uma árvore. Geralmente acompanhado pela esposa e dos filhos pequenos, um menino de 3 anos e uma menina de 8.
O colombiano é da cidade de Ibagué, conhecida como a capital musical do país. Saiu de sua terra em busca de melhores oportunidades. Na cidade natal trabalhou como padeiro, músico, pedreiro, entre outros. Após estas experiências, decidiu que seria melhor trabalhar sozinho. Antes de chegar ao Brasil passou pelo Peru e Equador. ;Desenvolvendo esse trabalho na rua acabamos conhecendo muitas pessoas e fazendo muitas amizades. Aqui no Brasil o problema é que as pessoas dão mais dinheiro para bêbado e pedintes do que para quem desenvolve algum tipo de trabalho artístico;, reclama Fredy, que ainda tem dificuldades para falar português.
Na estrada
Carlos saiu de Bogotá há dois anos, trabalhava como soldador e tinha o sonho de ser livre. Viajou por países da América do Sul desenvolvendo sua arte até chegar no Brasil, há 10 meses. Na Colômbia, ele deixou a mãe e um dos dois irmãos. O outro irmão mora atualmente em Belo Horizonte e também é artista de rua. ;Faço malabares com clavas no sinal entre a 706/707 Sul. O dinheiro é complicado. Nos outros países que passei as pessoas pagavam melhor. O Brasil tem muitos lugares bonitos e bons. O problema aqui é que as pessoas ainda não nos veem como artistas e, sim, como pedintes. Isso é difícil;, critica.
Com um bom português, ele conta que aprendeu o idioma apenas escutando os brasileiros em suas andanças pelo país. Apesar de gostar do Brasil, ele nota que os brasileiros desconfiam muito uns dos outros. ;Fui andando de Corumbá pela estrada rumo a um outro lugar pedindo carona e ninguém parou para me dar carona durante quatro dias. Mas o que de melhor que me aconteceu por essas andanças foi que nesta viagem uns policiais da estrada me deram carona para chegar em Campo Grande;.
Em um planejamento para o futuro, Carlos sonha alto. ;Eu quero ir para a Europa. Ouvi falar que lá valorizam mais o trabalho de artistas. O problema é que a passagem é muito cara. Talvez, eu peça para minha família me ajudar com o dinheiro. Mesmo sem falar a língua dos países de lá, acho que posso aprender da mesma forma que aprendi o português, só ouvindo;, acrescenta.
Desenhar a vida
O desenhista e caricaturista Claudio Pereira Gonzaga, 42 anos, mora em Valparaíso e trabalha todas as tardes em frente a um shopping no centro da capital. O artista conta que sempre desenhou e não fez cursos para desenvolver o dom. ;Todo mundo desenha quando criança, a minha diferença é que eu não parei e fui me aperfeiçoando. Exerci várias atividades, meu último emprego foi de vendedor em uma loja de tecnologia. Escolhi praticar o meu dom nas ruas, porque acho que é algo fácil de comercializar, além de ser uma arte que intriga as pessoas;, destaca.
Nem todos da família do desenhista apoiam seu trabalho. O pai não acredita que ser artista de rua possa dar um retorno financeiro suficiente. ;Minha mãe defende o que eu faço, mas meu pai nunca apoiou muito, ainda mais porque tenho um casal de filhos, um de 20 anos e um de 18;, conta.
Ele cobra mais visibilidade para os artistas de rua. ;A arte urbana cresceu muito nos últimos tempos. As pessoas estão reconhecendo mais o nosso trabalho. As plataformas digitais têm ajudado na divulgação. Minha arte também está no Facebook e no Instagram. Lá me chamo Dicoartista. O problema agora é a crise econômica que o país está passando. A minha média de clientes hoje são 10 por dia. Antigamente chegavam até 18 em um dia bom. Os estrangeiros ainda são os melhores clientes. Eles se encantam muito. Acho que na verdade ficam mais empolgados em ver eu fazer do que com o resultado final;, afirma.
*Estagiárias sob supervisão de José Carlos Vieira