Brasília entrou para o mapa graças a um belga. Coube ao astrônomo Louis Ferdinand Cruls desbravar o sertão de Goiás e demarcar o quadrilátero onde seria instalada a nova capital do Brasil. Ele comandou um grupo de especialistas que fez estudos científicos pioneiros na região Centro-Oeste, mapeando aspectos climáticos e topográficos, além de estudar a fauna, a flora, os cursos de rios e o modo de vida dos habitantes. Isso há mais de 125 anos.
A mudança da capital do litoral para o interior do país era prevista no artigo terceiro da Constituição de 1891, da primeira República. ;Fica pertencente à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada para nela estabelecer-se a futura Capital Federal;, dizia a Carta Magna.
O governo queria ocupar o vasto e desabitado sertão. No fim do século 19, o Brasil tinha pouco mais de 14,3 milhões de habitantes ; sete em cada 10 brasileiros moravam no litoral, e o índice de ocupação no Centro-Oeste era de 0,2 habitante por quilômetro quadrado, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Então presidente da República, o marechal Floriano Peixoto citou o artigo terceiro em 12 de maio de 1892, na abertura da segunda sessão ordinária da primeira legislatura. Ele cobrou dos parlamentares o cumprimento da lei. O Congresso Nacional destinou os recursos necessários à exploração da região da nova capital. Por meio da Portaria 114-A, Floriano Peixoto criou a Comissão Exploradora do Planalto Central.
Dom Pedro II
Na manhã de 9 de junho de 1892, 22 homens partiram do Rio de Janeiro rumo a Goiás. Eles levavam 206 caixotes e fardos (cerca de 10 toneladas), com barracas, armas, mantimentos e uma grande quantidade de instrumentos científicos. Fizeram de trem a primeira parte da viagem, entre o Rio e Uberaba. A estrada de ferro da Companhia Mogiana terminava na cidade do Triângulo Mineiro. A partir dali, os integrantes da Comissão seguiram em lombo de burro.
Em burros, eles cruzaram o Planalto Central de 1892 a 1894 para estudar a região e definir a área onde seria construída a futura capital. Registraram tudo o que havia nessas terras. Os aventureiros deixaram como herança mapas, relatórios e fotografias. Também fizeram estudos que iam além da obrigação.
Acerto histórico
Cruls aproveitou a estada em Pirenópolis (GO) para acabar com um dilema. Goianos juravam ser o Pico dos Pireneus como o ponto mais alto do Brasil. Falavam em cerca de 3 mil metros de altitude. Referência publicada pelo padre H. R. Des Genettes, erudito e morador de Pirenópolis que, em 1873, descreveu o monte a 2.932m do nível do mar, desbancando os picos do Itacolomi, Itambé e o Itatiaia.
Cruls enviou uma equipe de especialistas ao Pireneus para fazer uma medição precisa, com equipamentos adequados. Os pesquisadores iniciaram a subida da serra em 7 de agosto de 1892. No relatório final da missão, Cruls destacaria as Minas do Abade, já em ruínas. No dia seguinte, terminaram a subida do pico e aferiram a altitude: 1.385m. O pico não era o mais alto do país, nem sequer estava próximo disso.
Impacto ambiental
O sucesso da Missão Cruls motivou uma segunda Comissão do Estudo da Nova Capital, em 1894, pouco conhecida apesar de os lagos de Brasília terem sido preconizados pelo botânico e paisagista francês Auguste François Marie Glaziou, que participou desta segunda expedição, interrompida por falta de verba.
Nas duas missões, os astrônomos, geógrafos e naturalistas que as compunham descobriram acidentes geográficos da maior importância ambiental, como as águas quentes de Caldas Novas, o Salto de Itiquira ; uma das mais altas cachoeiras do país ; e as nascentes de Águas Emendadas, berço de três das maiores bacias brasileiras: Amazônica, Platina e São Francisco.
Ao medirem a altitude, o fluxo dos rios, a umidade do ar e a intensidade das chuvas, os cientistas elaboraram, um século antes, o procedimento que a Constituição brasileira de 1988 tornou obrigatório: a realização de estudos de impacto ambiental antes de qualquer construção importante. Os relatórios das duas expedições, publicados em 1893 e 1896, respectivamente, são os dois primeiros Relatórios de Impacto ao Meio Ambiente (Rima) feitos no Brasil.
Luiz Cruls liderou outras expedições científicas importantes dos séculos 19 e 20, como a observação da passagem de Vênus pelo disco solar em 1882 e a conferência internacional que definiu o meridiano de Greenwich como referência para todas as nações. Nascido em Diest, em 1848, Cruls morreu em Paris, em 21 de junho de 1908, há 110 anos.
Laboratório e oficina
Os caixotes continham dois círculos meridianos, teodolitos, sextantes, micrômetro de Lugeol, luneta astronômica, heliotrópios, cronômetros e relógios, seis barômetros de mercúrio sistema Fortin e 11 aneróides, bússolas, podômetros, diversos instrumentos meteorológicos, câmaras fotográficas com o material de revelação e uma pequena oficina de aparelhos mecânicos destinados ao conserto dos instrumentos que viessem a sofrer algum acidente.