Um juiz do trabalho do Distrito Federal deixou de lado a formalidade dos textos jurídicos e usou poesia para extinguir a demissão de uma funcionária da Universidade Paulista (Unip). Em 23 estrofes, o magistrado Carlos Augusto de Lima Nobre, auxiliar da 12; Vara do Trabalho de Brasília, descreve a história do processo, fundamenta e decisão e dá um "puxão de orelha" na empresa, que havia demitido Olga Rodrigues de Lima alegando justa causa.
Segundo a empresa, a funcionária abandonou o emprego após licença-maternidade e férias, em março deste ano. No entanto, a mulher se defendeu e apresentou provas de que havia sido internada compulsoriamente pelo hospital logo após o parto porque sua filha teve paralisia cerebral em função da falta de oxigenação no cérebro e os médicos consideraram imprescindível a presença da mãe ao lado da criança.
Impossibilitada de deixar a unidade de saúde para trabalhar, conta o juiz nos versos, a empregada avisou os patrões por meio de um amigo, também funcionário da faculdade. A empresa, no entanto, a demitiu e alegou, no processo, por meio de sua defesa, que o aviso deveria ter sido feito formalmente, por telefone, e-mail, carta ou até mesmo por mensagem de WhatsApp.
[SAIBAMAIS]Nos versos, que ocupam sete das nove páginas da sentença (leia a íntegra abaixo), o juiz Carlos Nobre, do Tribunal Regional do Trabalho, questiona o fato de a empresar valorizar mais a formalidade do comunicado do que o motivo do afastamento da funcionária do trabalho: ;Se é mesmo a forma que importa, / exigindo-se da reclamante a prova de / ter observado tais formas; / por princípio de igualdade ou paridade, / há que se exigir da reclamada, / a mesma prova. / Então, afinal, por qual forma ou ato / fixou tal regra de WhatsApp, telefonema ou e-mail para contato?/;.
Por fim, o juiz dá uma bronca na empresa, por não ter aceitado o comunicado feito por um colega de trabalho: "Ah, UNIP, / havia mesmo a necessidade / desta ação? / Onde está a sua educação? / Precisava submeter sua antes empregada / a tamanho constrangimento e humilhação?".
Mais conteúdo, menos forma
Ao Correio, o juiz do trabalho disse que decidiu escrever a sentença em forma de poema para marcar que mais vale o fato, a impossibilidade da empregada sair do hospital para salvar a vida de sua filha recém-nascida, que qualquer outro procedimento burocrático. "Eu quis mostrar que uma sentença, mesmo sendo um poema, não deixa de ser uma sentença;, explica.
Com a decisão, a universidade foi condenada a pagar os direitos trabalhistas da funcionária afastada e uma indenização por danos morais no valor de R$ 10 mil. A Unip ainda pode recorrer da decisão. Procurada pelo Correio, a universidade não havia se pronunciado até a última atualização desta matéria.
Mais poesia
O uso da literatura para resolver conflitos não é inédito no DF. Em 2016, o juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho também usou poesia para afastar uma multa de R$ 5 mil aplicada pelo Ibama a uma idosa que cuidava de duas araras-canindé. Em depoimento, a acusada informou à Justiça que o pássaro pertencia ao irmão desde 1993, e foi herdado por ela após a morte do familiar.
Leia a íntegra do poema que integra a sentença:
UMA SENTENÇA PARA OLGA
"Quisera fosse esta
mais uma sentença;
uma única decisão que,
resolvendo o conflito posto em juízo,
permitisse a este juiz acreditar que, ao final,
pudesse despir-se de sua toga e descansar,
ou que me fizesse crer, olhando para trás,
não ter sido exatamente um litígio,
que justificasse instar o Estado a atuar,
ou que tudo não passara, oxalá,
de um mal entendido,
carecido de mais diálogo
ou sei lá.
Quisera fosse esse mal entendido
apenas um erro de comunicação.
Nada que pudesse impactar
a boa fé de uma relação.
Fato grave que causasse
sua abrupta extinção.
Tão grave a ponto de polarizar
duas forças agora contrapostas,
personificadas em
"reclamante" e "reclamado",
mas antes unidas e
reconhecidas entre si
simplesmente por
"patrão" e "empregado".
Mas não.
Esta não é mais uma
dessas tantas histórias
que encerram o velho conflito
entre capital e trabalho.
Esta é a história de OLGA,
trabalhadora gestante,
que tendo saído de licença-maternidade,
viveu, após o parto,
um grande tormento.
Em internação hospitalar compulsória,
ali permaneceu para
salvar a pequena ALICE,
e ao final, quando de sua alta,
viu-se abandonada pelo então empregador,
tendo sido ela, a mãe, acusada, veja só,
de ter abandonado o patrão,
como se lhe sobrasse,
entre a vida de sua recém-nascida filha e
aquele emprego,
alguma opção.
E agora me pergunta OLGA:
- "Doutor, como pode ?
Justa causa por ter abandonado o meu patrão ?"
E ela mesma dá a solução:
- "Nunca tive a intenção"
Adentraram à sala de audiência
OLGA e sua pequena ALICE,
- nascida de parto cesáreo
por sofrimento fetal agudo,
reanimada pelos médicos após o parto,
foi intubada,
traqueostomizada,
sequelada com atrofia cerebral,
internada em UTI neonatal,
com imposição, pelos médicos, de
igual internação de sua mãe,
sem previsão de alta,
registrou o relatório médico
daquele mês de março.
Adentraram à sala de audiência
para provar que,
houvesse que houvesse,
não haveria sentença que pudesse
apaziguar o coração daquela mãe que,
desde o parto e até aquele momento,
não tivera do que se alegrar.
Não lhe fora permitida a estabilidade
pós-licença gozar;
não conseguira até então descansar e,
por isso, da mesma forma,
não deixaria este juiz repousar.
Veio "incomodar",
o seu calvário apresentar,
trazê-lo às barras do Judiciário,
desafiando com a sua presença,
a prolação de uma distinta sentença
que pudesse,
em tão curto período de vida atribulada,
fazer alguma diferença.
Talvez tenha sido ingenuidade imaginar
que a reclamada pudesse comparecer em juízo
e a sua própria honra resgatar.
Justificar ter-se equivocado ao dispensar
aquela empregada gestante que,
após o parto, e para a sua filha salvar,
havia sido compulsoriamente internada,
mas que se tratava de empregada
que jamais tivera sido minimamente apenada.
Mas, ao contrário,
e vergonhosamente,
insistiu ter a reclamante
abandonado o emprego.
Assim argumentou em sua defesa,
sem meneios nem constrangimentos.
Alegou ter a reclamante
ignorado procedimentos.
Arrematou:
não poderia ter enviado ao menos um e-mail ?
Mas não sendo suficiente
toda a documentação apresentada
pela reclamante,
a comprovar sua internação hospitalar compulsória,
a luta pela vida de sua ALICE,
e tamanho drama pessoal,
a impossibilitá-la,
até mesmo mentalmente,
de se preocupar em comunicar,
própria e adequadamente;
não sendo nada disso o bastante nem o suficiente,
em sua contestação,
escreve a demandada, literalmente,
que ao recém-nascido,
OLGA, sua mãe,
"não deu a atenção devida",
porque não lhe comunicou da situação,
"colocou em risco a sobrevivência de um bebê recém-nascido,
já que por sua culpa, seu contrato de trabalho foi rescindido".
Que absurda alegação !
Finalizou sua defesa a reclamada,
justificando que somente
por intermédio desta ação,
teve conhecimento da delicada
saúde da menina ALICE.
E nem assim, diante de tantas evidências,
relatórios médicos,
atestados,
tudo a comprovar a internação compulsória da mãe
para além do prazo da licença-maternidade e férias,
a justificar cristalinamente
o caso fortuito ou força maior,
de natureza
física,
mental,
emocional
e até mesmo espiritual,
a fazer com que
aquela mãe não comunicasse o patrão,
aquele reclamado insistiu estar com a razão.
Mas segue que em depoimento pessoal,
a preposta da reclamada,
funcionária do Departamento Pessoal,
mesmo afirmando
o Direito do Trabalho conhecer,
defendeu aquela preposta que,
neste ramo do Direito,
é a forma que há de prevalecer !
- "A reclamante não nos comunicou", justificou.
Mas então, a respeito da formalidade
da comunicação exigida pela reclamada,
aqui vai um pensamento:
se deveria a reclamante,
como defendeu a reclamada
na contestação à exordial,
ter cuidado de avisar
por WhatsApp,
e-mail,
ou telefonema;
se eram esses os procedimentos referidos
pela preposta em seu depoimento;
se é mesmo a forma que importa,
exigindo-se da reclamante a prova de
ter observado tais formas;
por princípio de igualdade ou paridade,
há que se exigir da reclamada,
a mesma prova.
Então, afinal, por qual forma ou ato
fixou tal regra de WhatsApp, telefonema ou e-mail para contato ?
E por qual meio alertou seus empregados
para esses canais como um formal procedimento,
para resguardarem seus direitos?
E que se fixe esta lição,
para um reclamado que sobre o
ensino alicerçou toda a sua instituição:
nesta seara, prevalece um princípio,
uma regra de ouro,
de que mais vale o fato
do que um simples formato,
um papel, uma forma que se pretenda dar
a qualquer ato ou
meio outro.
Para caracterização do abandono,
não é suficiente o elemento objetivo
- um prazo decorrido, e
um telegrama de convocação enviado -;
necessário também
o elemento subjetivo,
na intenção consubstanciado.
Então, é bom que se diga,
a bem da Justiça,
e do quanto há no autos,
que apesar de a reclamada
alegar que aquela empregada
poderia ter "solicitado que algum parente ou amigo trouxesse notícia sua",
como se vê no último parágrafo da página três da defesa,
nada fala contra a imagem do
celular apresentado pela reclamante,
que em conversa de WhatsApp,
OLGA pediu ao colega de ofício, de nome Ildo,
que levasse ao patrão
o relatório médico de sua internação,
e explicasse sua situação,
ao que o colega responde que,
infelizmente, na empresa não aceitaram
por que faltava anotar no documento,
o prazo daquela internação.
Mas ora, para os próprios médicos,
não havia previsão de duração !
E escreveu aquele amigo a OLGA,
ter sido orientado para dizer a ela
que conseguisse outro atestado.
Inegavelmente, restou provado
o fato indigitado:
a reclamante envidou esforços
para comunicar a reclamada de seu infortúnio.
Mas a justa causa a ser aplicada
já estava definida pela reclamada,
era esse o seu desígnio.
E o que dizer dos telegramas
enviados pela reclamada,
para supostamente convocar
a reclamante de volta ao trabalho?
Foram todos devolvidos sem cumprimento,
por insuficiência do endereço
do destinatário - da reclamante -
neles informados !
Não poderia a reclamada
ter enviado à reclamante
um e-mail,
uma mensagem de WhatsApp,
dado um telefonema,
ou ainda,
enviado um funcionário amigo
para levar a ela tal convocação ?
Talvez assim, esse mesmo funcionário amigo
pudesse igualmente servir de veículo
da notícia daquela situação de que a reclamada
tanto se queixava
e uma suposta falta,
de que tanto se ressentiu.
Ante todo o conjunto
de fatos demonstrados e
aqui já referenciados,
restou claro que a reclamante
tentou a comunicação,
e se não logrou êxito no seu intento,
foi porque acreditou tê-lo feito,
porque assim o Ildo a informou.
Então, e afinal, em quem acreditar?
E para além da forma,
conforme já explicado,
abandonar o emprego
jamais foi desejado;
nunca houve a intenção.
A reclamante ainda pediu,
quanto à sua demissão,
que a reclamada procedesse à reversão.
De toda sorte,
ainda que por preciosismo,
ou apenas exercício de imaginação,
vai aqui uma provocação:
ainda que a reclamante não tivesse
logrado demonstrar,
ter tentado comunicar,
poderia a justa causa a ela,
nessa situação, se aplicar ?
Também não !
Se estava ela impossibilitada de deixar o hospital,
deveria a reclamada aguardar
a reclamante reaparecer para esclarecer
aquele impedimento;
deixá-la comprovar toda aquela situação,
e a justa causa afastar.
Continuando aquela provocação inicial,
é coerente e lógico pensar que,
se é verdade que a uma gestante
se lhe garante o direito à estabilidade
sem qualquer necessidade de
ciência ao empregador ou sua comunicação;
se também a ausência do preposto à audiência é justificável,
comprovada sua impossibilidade de locomoção,
após sua ausência àquele ato;
então, pela mesma razão,
princípio, ou inspiração de Direito,
por certo estaria plenamente justificada,
que referida comunicação pela
reclamante, somente
viesse a efeito após sua alta hospitalar
- cuja internação representou, até então,
igual impossibilidade de locomoção.
E formulada idêntica provocação
à preposta da reclamada em audiência,
e demonstrando ela conhecer a resposta,
mas sem responder à pergunta,
talvez por desconcerto ou nervosismo,
ou por não haver mesmo outra resposta,
nada mais lhe restando,
sem nenhum outro artifício,
mexeu em sua bolsa, balançou a cabeça e riu.
E já encerrando todo esse debate
a respeito de fato e forma,
justifico aqui a forma deste ato,
escrito assim, como um poema,
que se presta a reafirmar que,
mesmo neste formato,
não se engane o mais desatento
nem o desavisado:
não há diferença:
sua natureza não é distinta
de nenhuma outra Sentença.
Ah, UNIP, /
havia mesmo a necessidade
desta ação?
Onde está a sua educação?
Precisava submeter sua antes empregada
a tamanho constrangimento e humilhação?
Que esta sentença para OLGA
lhe sirva de lição."