Murilo Fagundes*
postado em 13/05/2018 08:00
As bandeirolas vermelhas e brancas enfeitam as ruas de Planaltina. Os sinos das igrejas tocam todos os dias ainda com o sol nascendo. O foguetório toma os céus da cidade mais antiga do Distrito Federal, que, ao 158 anos, ainda conserva características do tempo em que pertencia a Goiás e Brasília não existia. O carro de som anuncia o convite dos imperadores e dos foliões de rua: é tempo de Festa do Divino, que se estende para a roça. De hoje até o próximo domingo, fiéis montados em cavalos percorrerão as fazendas da região, no chamado ;giro de folia;.
O Correio esteve nas áreas urbana e rural de Planaltina para conhecer as pessoas que mantêm viva essa tradição, celebrada desde 1882 na cidade. Também conferiu os preparativos para esta que, na religião católica, é muito mais do que uma festa, pois, de acordo com a fé cristã, o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos (leia Para saber mais).
Porteira aberta
O dia nascia quando a equipe do Correio chegou à Fazenda São Felipe, em Água Fria (GO), na área rural de Planaltina, a 150 km da capital, para acompanhar a preparação da Alvorada. Marcada para as 20h de hoje, é o pontapé inicial da Folia de Roça. A Família Lôbo acordou de madrugada na última sexta-feira para trabalhar na organização da festa de abertura.
Mesmo após visitar os alferes da Folia na cidade, encher o carro de mantimentos, conferir os produtos de limpeza, organizar os materiais para enfeitar a fazenda, dormir de madrugada, acordar às 4h, encarar 110km de estrada entre Planaltina e Água Fria de Goiás, Stela Maris Lôbo, 46 anos, mantém o pique para explicar todos os detalhes.
Professora da rede pública do DF, ela parece ter assumido para si a missão de defender a importância da memória religiosa e cultural da família. Sempre exalta alguma conquista do pai, Floriano Lôbo, 85, patrono dos carros de boi na cidade, ou da mãe, Ana Lôbo, 83, biscoiteira de mão cheia da cozinha do Divino. Além de primos, Floriano a Ana são os donos da fazenda.
Stela cresceu escutando ladainhas e cantorias nos pousos de folia, e tem um apego indiscutível com tudo o que remete à Folia e à família. ;Na nossa família, onde um vai, todos vão atrás, principalmente na Folia. Sinto-me grata e emocionada, porque sempre peço que o Divino ilumine meus familiares, e ele nunca nos desampara;, diz a professora.
Labuta
Após os Lôbo passarem dois meses preparando o terreno para receber a festividade, faltavam menos de 48 horas para que as porteiras fossem abertas aos foliões. Em todos os cantos, alguém trabalhava. O lugar mais movimentado era a cozinha. Na Folia, os donos da casa oferecem os alimentos a todos. Para dar conta da demanda, uma equipe escolhida a dedo pela família preparava as guloseimas na manhã de sexta-feira. Ao som de moda de viola em um rádio portátil, os 10 cozinheiros, liderados pelo também folião Manoel Beira Rio, 61, não paravam um segundo. Todo o trabalho com o objetivo de servir 2 mil foliões ; mil no jantar de hoje e mil no café e no almoço de amanhã.
O cardápio do jantar: carne ao molho madeira, feijão em caldo, purê de batata, arroz e salada; no café de amanhã, chá, leite caramelado, pão de queijo assado na hora, peta, rosca; por fim, no almoço de amanhã, o famoso cardápio tradicional: arroz, feijão tropeiro, guariroba (palmito de gosto amargo), carne de folia (carne frita de panela) e mandioca. ;Estamos desossando e temperando quatro vacas. A despensa está recheada. Não tem miséria;, brinca Beira Rio. A família do cozinheiro será responsável pela festa no ano que vem.
"Sinto-me grata e emocionada, porque sempre peço que o Divino ilumine meus familiares, e ele nunca nos desampara;Stela Maris Lôbo,professora
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A voz da experiência
João de Souza Lima era um daqueles homens que deixa o olhar se perder no horizonte quando se torna reminiscente. Assim o Correio definiu personagem da notícia na edição do jornal de 21 de maio de 1999. Quase duas décadas depois, voltamos a conversar com o devoto do Divino que veio do interior da Bahia e chegou a Planaltina quando a capital nem havia sido inaugurada. Aos 84 anos, com a experiência traduzida nos cabelos brancos, seu Souza Lima, como é conhecido, esperava a equipe sentado em uma cadeira na calçada de casa, onde permanece todos os dias por horas. Do folião de 1999 para o de 2018, pouca coisa mudou.
A reportagem entregava as feições e características do servidor aposentado da Polícia Federal: mãos inquietas, histórias com detalhes, riqueza de descrições. O abatimento está estampado no rosto dele. O sorriso não saiu na foto, mesmo com a insistência da fotógrafa. Souza perdeu a mulher há pouco tempo. Devido à idade avançada, deixou de girar a folia. Costuma ir só à Alvorada. ;Nem me lembro da última vez que girei a folia toda. Sinto muita falta, mas é necessário entender que, a partir de uma certa idade, é preciso maneirar;, diz.
Outra coisa que não mudou nos últimos 19 anos foi a admiração da comunidade por Souza Lima. Prova disso, a entrevista era sempre interrompida pelos cumprimentos de diversos vizinhos, amigos e conhecidos que passavam pela rua. ;Com outros companheiros, sempre estive à frente da festa, na batalha, para não deixar ela acabar. Sinto-me feliz com tanto reconhecimento;, conta o experiente folião, com mais de 40 anos de história na comemoração religiosa.
Souza Lima conta que, no início, a Festa do Divino na roça contava com poucos seguidores e lembra que a tradição rural começou como uma gincana escolar. Passados alguns anos, as fazendas receberam até 5 mil pessoas, que pernoitavam em barracas espalhadas pelos pastos. Além de notar o crescimento do número de fiéis, Souza afimra que a presença dos jovens aumentou. ;Vários amigos diziam que os jovens não deveriam participar da Festa do Divino, porque só faziam bagunça. Eu batia o pé. Afinal, as pessoas mais novas serão os foliões do futuro. Não devemos condená-los;, ratifica.
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Missão de fé
O missionário Roberto Santos, 34, decidiu propagar a fé e reviver a tradição da Festa do Divino quando aceitou o convite para assumir o mandato de imperador da solenidade de 2018 na Paróquia São Sebastião, igreja matriz de Planaltina. Um dos mais novos imperadores da história, Robertinho, como gosta de ser chamado, está à frente da organização e carregará a coroa, símbolo do império do Divino Espírito Santo.
A história mostra que, nos primórdios da festividade, os imperadores e os foliões de rua eram selecionados por terem posses de terra ou por serem pessoas influentes na política. Hoje, a história é outra. Roberto não tem posses de terra, riquezas materiais e não é ligado ao cenário político. ;Quem me escolheu como imperador não foi o padre. Foi o Divino Espírito Santo. Às vezes, penso: como eu, pessoa tão pequena, fui escolhido? É como fazer uma festa para uma pessoa muito grande, sendo alguém impossibilitado. Mas sou devoto. E isso me move;, declara.
A maior parte dos discursos do missionário é marcada pelo apelo religioso. Os argumentos, baseados em passagens bíblicas, cartas encíclicas, discursos papais. As mãos se movem constantemente e os olhos se apertam quando Roberto puxa na memória frases profundas, as quais o ajudaram a manter a calma na organização do evento, que deve reunir 10 mil pessoas no auge do Encontro das Bandeiras, no próximo sábado.
Missionário e fundador da Comunidade Oferta & Oblação, grupo que busca evangelizar jovens católicos na Paróquia São Sebastião, Robertinho mobiliza centenas de retirantes em encontros constantes e fervorosos. Mas não é por ser jovem que a tradição dos mais antigos é esquecida pelo imperador. ;Temos de olhar para o futuro sem deixar de olhar para o retrovisor. Precisamos da essência e da memória dos mais velhos para realizar a festa;, afirma.
Nascida na Folia
Professora aposentada, Imelda de Melo Campos, 85, nasceu ;no meio da Folia;, como diz. A filha de Francisco de Melo (Seu Bichinho) e Francisca Guimarães (Dona Sinhá), ambos devotos do Divino Espírito Santo, perpetuou a tradição da Festa do Divino na família e continua ativa no festejo. Ela coordena o almoço que será servido, no próximo sábado, na Praça da Igreja São Sebastião, no centro histórico de Planaltina.
Moradora de uma chácara, Imelda recebe as visitas com cafezinho e causos antigos. ;A lembrança que eu mais tenho da Festa do Divino é a do meu pai dançando catira e eu caminhando no meio dele, ainda pequena. Até as marcas no chão me fazem lembrar a catira;, comenta ela, sobre a dança típica goiana, marca do festejo.
O imperador Robertinho recorreu a Imelda para conhecer mais sobre a memória cultural. A devota fez questão de explicar de uma forma simples a tradição católica. ;Conhecida como Festa do Divino em todas as cidades, a festa em louvor ao Divino Espírito Santo tem dois aspectos: o cultural e o religioso. O cultural é o que aprendemos vendo a mamãe e o papai carregando a bandeira. O religioso tem a ver com a vinda do Espírito Santo, no dia de Pentecostes, em que nós, católicos, ficamos com o coração cheio de fé, espiritualidade, compaixão e amor pelo próximo. Com o tempo, o lado cultural muda um pouco, mas a profundidade espiritual é a mesma.;
* Estagiário sob supervisão de Renato Alves
Para saber mais
Patrimônio Imaterial
A Festa do Divino é uma das variações da comemoração de Pentecostes, festa católica celebrada 50 dias depois da Páscoa. Remonta ao momento em que, de acordo com a fé cristã, o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos.
A tradição da Festa do Divino começou em Planaltina em 1882, ano em que o posto de imperatriz foi assumido por Auta Carlos de Alarcão. Até se tornar Patrimônio Imaterial do Distrito Federal, em 2013, o evento católico mais antigo da capital passou por muitas mudanças.
A Folia na Roça, por exemplo, deixou de existir por um tempo. Foi retomada em 1984 por meio de uma gincana cultural realizada por um grupo de jovens em uma escola de Planaltina. As pessoas mais velhas montavam questões sobre a tradição, e as mais novas respondiam, como em uma competição escolar. Após 10 anos, o festejo foi levado para a zona rural e, nesse momento, retomaram a festa como era antes.
O ex-imperador Wálteno Marques da Silva (foto) escreveu um livro sobre a Festa do Divino em Planaltina. Na obra, ele conta como foram os desafios, quantos foram os gastos e quais são os protocolos na organização da solenidade. Algumas curiosidades: em 2016, foram gastos quase R$ 6 mil em flores para decoração de altares; é tradição soltar sete pombos brancos no Encontro das Bandeiras, o que simboliza os dons do Espírito Santo; é função dos padres das paróquias escolher os imperadores e foliões do outro ano, mas, na Folia da Roça, os postos de alferes são ocupados a partir de uma lista de espera, que costuma ser concorrida.
A foto publicada na edição de 19 de maio de 1997 do Correio mostra os cavaleiros da Folia da Roça chegando a Planaltina para o Encontro das Bandeiras, evento que reúne os festeiros de todas as paróquias da cidade e os foliões da roça na praça central da Igreja Matriz, no dia de Pentecostes. À frente, Joaquim de Felipe (esq.), também guia da folia deste ano, direcionava a tropa. À direita, com o mastro, Alderico de Souza (Seu Nô), à época, regente da Folia. Seu Nô, depois de sofrer um Acidente Vascular Cerebral (AVC), precisou se aposentar da festa e se mudou da roça para a cidade. Mas ainda é referência para muitos foliões como um dos principais baluartes da tradição no campo.
Memória
Cavaleiros chegam à cidade
A foto publicada na edição de 19 de maio de 1997 do Correio mostra os cavaleiros da Folia da Roça chegando a Planaltina para o Encontro das Bandeiras, evento que reúne os festeiros de todas as paróquias da cidade e os foliões da roça na praça central da Igreja Matriz, no dia de Pentecostes. À frente, Joaquim de Felipe (esq.), também guia da folia deste ano, direcionava a tropa. À direita, com o mastro, Alderico de Souza (Seu Nô), à época, regente da Folia. Seu Nô, depois de sofrer um Acidente Vascular Cerebral (AVC), precisou se aposentar da festa e se mudou da roça para a cidade. Mas ainda é referência para muitos foliões como um dos principais baluartes da tradição no campo.