Na maioria das vezes, tudo o que elas têm a oferecer são orações e pensamentos positivos. Seja presencialmente, seja por meio de intercessões a distância, as benzedeiras e rezadeiras ainda são o refúgio de muita gente em momentos difíceis. As queixas de quem as procura vão desde enfermidades a sensações de mau-olhado, e há testemunhas que garantem ter alcançado uma cura pedida. Acolhedoras de pessoas dos mais variados credos, confiantes nos poderes espirituais, as benzedeiras se tornaram responsáveis por manter vivos, na capital do país, ritos interioranos e tradicionais.
Antonia Alves dos Santos é uma dessas pessoas. Nascida em Corumbá (GO) e moradora de Taguatinga, dona Antonia está prestes a completar 90 anos. Apesar da idade e da audição em parte comprometida, a benzedeira não perde a fé nem a força para atender visitantes três vezes por semana. Ela conta que, com o passar do tempo e a perda de entes queridos, aprendeu a resolver tudo por conta própria, tanto quando os problemas envolviam a família quanto nas situações em que centenas de desconhecidos recorriam a ela em busca de ajuda.
Mãe de cinco filhas, avó de sete netos e bisavó de 10, Antonia não teve a chance de conhecer o próprio pai. Ele morreu quando ela tinha apenas 1 ano. A posterior convivência com um tio benzedeiro fez com que a mulher desenvolvesse vocação para esse trabalho.
Dona Antonia descobriu o dom para a reza aos 12 anos, após aprender inúmeras orações enquanto crescia sob os cuidados do tio. Certo dia, enquanto brincava perto de casa, teve uma visão. ;Sonhei que estava deitada em um campo com mato alto e vi Nossa Senhora Aparecida passando sobre a água e entregando uma carta em minhas mãos. Ela disse que aquilo seria minha salvação;, descreve. Antonia não sabe dizer o que estava escrito no papel, mas, a partir de então, se tornou devota da santa e começou a trabalhar rezando por outras pessoas.
Trabalho espiritual
As rezas podem ocorrer na casa dela, em hospitais e até a distância. Os motivos da busca pelo serviço prestado por dona Antonia são variados, vão desde queixas de mal-estar até pedidos de quebra de mau-olhado. Durante os três dias da semana em que recebe visitantes, ela segue duas regras: não reza quando está mal, para não acumular sentimentos negativos; e não atende qualquer pedido de oração entre as 18h e as 19h, pois, segundo ela, esse é o horário em que os anjos dizem ;amém;.
O rito de orações envolve a pronunciação de palavras que somente ela sabe ; e não revela para ninguém. De acordo com os parentes, dona Antonia chega a passar duas horas por dia diante do pequeno altar que mantém na casa que divide com a família, em Taguatinga Norte. Lá, ela guarda imagens de santos, fotos de pessoas que pediram oração, terços e velas acesas em homenagem a familiares. E o ofício fica apenas a cargo dela: por considerá-lo árduo e não querer que outras pessoas sofram como ela, o trabalho não é transmitido a ninguém mais. ;É muito doloroso. Não quero passar isso para minhas filhas. E também é um dom. É preciso ter vocação para ele;, afirma.
Entre orações e até partos, realizados quando atuava como uma espécie de doula, o trabalho de dona Antonia ficou conhecido ao longo do tempo. Apesar da procura frequente, ela afirma que só promove curas espirituais. Ela mesma recomenda aos visitantes que casos graves de saúde sejam tratados nos hospitais. ;Deus deixou os médicos aqui para isso;, defende.
A filha mais velha, Aparecida Gomes, 60, comenta que a tradição costumava ser mais forte quando a família morava em Goiás. Lá, eles plantavam, colhiam e a rezadeira usava ervas para benzer. ;As pessoas nos ensinavam de tudo. Toda Sexta-Feira Santa, nós saíamos para colher ervas e fazíamos chás. Se estivéssemos em Corumbá, ela continuaria usando esses produtos, mas, hoje, reza apenas com os terços;, comenta Aparecida.
Até cura contra picadas de cobra e antecipação de acontecimentos estão no histórico de dona Antonia. Por isso, a benzedeira reconhece o papel que exerce na comunidade: ;O povo daqui tem fé em mim. Faço um trabalho de que gosto. Minha vida é meu serviço;.
Quem testemunha a favor dela é Antonio Genuino Martins, 62. O aposentado, nascido em Caratinga (MG) e morador da M Norte, é católico praticante e frequenta a casa de dona Antonia há ao menos 12 anos. Ele soube do trabalho dela por meio do afilhado que, à época, recomendou as bênçãos para o filho mais velho de Antonio. O garoto estava com problemas de saúde e, segundo o pai, curou-se graças às orações da benzedeira.
;A gente percebe que tem coisa que não é doença. O menino tomava remédio, e não resolvia. Sentia cansaço, e nada adiantava. Depois que a dona Antonia o viu, tudo passou e ele só melhorou;, relata. Desde então, o mineiro passou a visitar a rezadeira quase que semanalmente. ;Saio bem levinho de lá. Ela é um ser humano muito humilde e simples;, afirma.
Troca de energia
Para a nutricionista e fitoterapeuta Deise Lopes, esse tipo de sensação é considerado comum. Ela associa o trabalho em que se obtêm respostas positivas do corpo à troca de energia entre os seres humanos e as plantas. ;O benzimento parte do pressuposto de que todo ser vivo tem um campo eletromagnético. Isso vem de estudos da medicina tradicional e é recorrente em várias culturas. Uma hipótese para o funcionamento do benzimento é a interação entre o campo das plantas e o nosso.;
Deise afirma que, além disso, há o efeito dos dizeres sobre cada pessoa que é beneficiada pelo trabalho. ;Como o benzimento geralmente está associado à oração, há muitos estudos sobre o efeito dela. A forma que fazemos o benzimento no Brasil vem principalmente das raízes afro-indígenas;, completa.
Em países orientais, princípios semelhantes são aplicados, pois, segundo Deise, as áreas da energia espiritual e física estão conectadas. ;Na medicina chinesa e indiana, por exemplo, há isso de usar as plantas para criar uma atmosfera mais interessante para a meditação e a cura. Na medicina oriental, essa é uma estratégia muito importante. E há também a oração dos mantras e a repetição deles para melhora do campo de energia. É um pouco diferente do que fazemos, mas, como conceito, é algo comum a todas as medicinas tradicionais;, diz.
Experiências compartilhadas
Com o objetivo de congregar pessoas para compartilhar os conhecimentos deixados por familiares e povos antigos, um grupo de aproximadamente 15 integrantes se reúne na única escola de benzedeiras do país. Os encontros ocorrem duas vezes por mês, na Unidade Básica de Saúde (UBS) n; 3, na 115 Norte. Durante uma hora, participantes de diferentes idades se apresentam e, depois, passam a atender a comunidade. Desde o início do projeto na UBS, em maio de 2017, o número de pessoas benzidas saltou de 10 para mais de 150 por dia.
De acordo com a idealizadora da iniciativa, a benzedeira e assistente social Maria Bezerra, 54, o objetivo não é ensinar às pessoas como benzer outras. A essência do projeto está na troca de relatos, especialmente dos tradicionais. Quando a proposta foi concebida, em setembro de 2016, os benzimentos ocorriam na casa de uma amiga de Maria. A mudança para um posto de saúde foi motivada pela tentativa de tornar o projeto mais acessível.
;Existe um movimento nacional para resgate desse conhecimento. Em algumas cidades, as benzedeiras têm a garantia de poder exercer a atividade junto ao Sistema Único de Saúde, como prática oficialmente reconhecida. O benzimento é outra forma de cuidarmos do nosso corpo. Por meio dele, passamos a escutar nosso corpo e a sentir do que ele precisa. Muitas vezes, isso traz de volta nosso poder de conexão com a natureza;, diz.
O horário de ação das benzedeiras também tem a natureza como base. Ele se encerra às 18h, porque esse é o horário em que as plantas se recolhem. ;O nascer do sol traz a energia da abertura às flores. No poer, elas se fecham. A energia da natureza é a mesma que trocamos e, como trabalhamos com ervas e raízes, é preciso entender esse movimento dela.;
Neta de benzedeira, Maria conta que há cerca de cinco anos se conectou com a avó durante uma meditação. A experiência fez com que ela recorresse a benzedeiras conhecidas no DF para tentar resgatar o caminho, deixado de lado pela avó sem um motivo específico. Com o tempo dedicado à pesquisa sobre a prática, ela percebeu que a tradição tendia à perda de reconhecimento. ;As pessoas mais novas geralmente querem respaldos tecnológicos e científicos. Muitas mães e avós acabam não se reconhecendo porque as próprias famílias não reconhecem o trabalho delas. O mesmo aconteceu com as parteiras, pela ameaça do saber científico e das famílias.;
Ciência e religião
Especialista em filosofia da ciência e da religião, o professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB) Agnaldo Cuoco Portugal explica que o benzimento vem da ideia de tentar agraciar outra pessoa com um bem. A prática é antiga e comum em diversas culturas. ;A noção de bênção é bastante ampla. Você está invocando, por meio da palavra, para que um bem aconteça àquela pessoa ou grupo, a partir de uma força não natural;, afirma.
Agnaldo ressalta que a manutenção de tradições e ritos religiosos é uma forma que a humanidade adotou para superar o ;efeito destrutivo da passagem do tempo;. ;A tradição pode ser algo revolucionário no tempo em que estamos vivendo. Ela não se trata da manutenção do passado, é uma forma de renovação do presente;, observa.
Em relação à falta de reconhecimento de práticas antigas, prejudicadas pela valorização do saber científico, ele comenta que não há motivo para colocá-las em conflito com a abordagem técnica e científica. ;A vida humana é muito frágil e situações existenciais são bem difíceis às vezes. Em casos de doenças terminais, por exemplo, o fato de as pessoas recorrerem a mais de uma tentativa de solução é absolutamente legítimo ; desde que não haja nada de errado do ponto de vista ético.;
Para a benzedeira Christiane Caetano Barbosa, 31, a escolha por adotar a prática partiu da vontade de criar laços com a bisavó, que também exercia o ofício. Antes de fazer parte da escola, ela nunca havia benzido alguém. Hoje, a acupunturista e doula conta que o número de pessoas à procura de benzedeiras tem crescido cada vez mais. ;Quanto mais as pessoas conhecem, mais nos procuram na escola. E é uma alegria muito grande estar lá, sendo útil e oferecendo conforto. Depois que saio, geralmente me sinto muito mais recarregada e abastecida do que quando cheguei;, compara.
Entrevista com Maria Bezerra, idealizadora da Escola das Benzedeiras
Como você realiza seu trabalho de benzedeira?
Nos atendimentos, costumo usar uma base comum de orações, sempre pedindo proteção ao Espírito Santo, aos santos e permissão ao anjo da guarda da pessoa. Quando estamos na frente de uma pessoa, ela geralmente tem uma história de sofrimento ou, às vezes, só quer ser benzida para se sentir bem. Por isso, a fala da reza é muito intuitiva. Há a parte inicial, por meio da qual chamamos espíritos divinos, e o restante vai na linha de elevar aquela pessoa e de buscarmos juntas a cura e o caminho. Hoje, eu me conecto com as forças da natureza, principalmente com a do amor acima de tudo. O que passo aos demais é uma energia disso, para despertar nas pessoas sentimentos poderosos de gratidão, amorosidade e carinho.
Quais são as queixas mais recorrentes das pessoas que vão à Escola de Benzedeiras procurando atendimento?
Há muitos casos de pessoas com depressão e ansiedade buscando benzimento. A gente também entende isso como uma desconexão do eu com a natureza. Também há muitos relatos de entorses, maus-olhados, sensação de que as coisas não estejam bem ou que estejam dando muito errado. Além disso, há muitas crianças levadas por pais e mães que falam que elas estão muito agitadas e que acordam várias vezes durante a noite. Em muitos desses casos, elas saem de lá dormindo.
Quem pode ser benzido e quem pode se tornar benzedor?
Qualquer um pode se benzer. Já o principal pré-requisito para se tornar benzedor é ter fé. Não necessariamente religiosa, mas fé de que algo maior que você orienta sua ação no sentido do amor e do bem-querer. Isso tudo é para que você possa bendizer àquela pessoa que te busca em um momento de dor e sofrimento. Mas é necessário ter disponibilidade amorosa, porque uma benzedeira não oferece benzimento. A outra pessoa é quem deve pedir e, nesse momento, ela se abre para isso. Não podemos interferir no livre-arbítrio do outro. Você não pode benzer alguém que não queira, senão não acontece a troca.
Próximas ações da Escola de Benzedeiras
Unidade de Saúde n; 3
(115 Norte)
4 de maio
Das 16h às 18h
Mandala do Parque Olhos D;Água
(413/414 Norte)
9 de junho
Das 9h às 12h