Jornal Correio Braziliense

Cidades

Ocupações ilegais se espalham por diversos pontos do Plano Piloto

Em locais dispersos onde deveria ser o Parque Ecológico Burle Marx, no setor Noroeste, pequenos barracos de madeirite e papelão resistem. Catadores de lixo fazem da região local de trabalho e de moradia desde os anos 1980


Em Brasília, tem a Asa Norte, a Sul, o Noroeste e o Sudoeste. E tem o Cerrado. Não a vegetação. Esse é o nome da favela que, há quase 40 anos, vem e volta, salpicando de lixo, madeirite e lona a paisagem do cerrado — essa, sim, a vegetação. Como raízes, os moradores — catadores de material reciclável — se fincaram nessa área, que começa (ou termina) logo depois do Depósito do Detran, se estende por toda a altura da 911 Norte e avança mato adentro, chegando ao mais novo bairro do Plano Piloto, em uma área que, teoricamente, seria o Parque Ecológico Burle Marx. Não adianta retirá-los. No mesmo dia ou, no mais tardar, no seguinte, tornam a erguer os barracos.

Quem passa de carro por ali se pergunta de onde vem essa gente, sem saber que o Cerrado é a favela mais persistente do Plano Piloto. Por muito tempo, o mato alto e a ausência de pista próxima esconderam uma invasão que tem origem ainda na década de 1980, quando moradores de rua se instalaram no terreno atrás de uma faculdade particular na 707/907 Norte. Era a chamada Favela do Ceub, que chegou a ter associação de moradores e sobrevivia dos despejos da classe média e do auxílio de movimentos da Igreja Católica.



Extremamente populoso, o aglomerado se estendia até a margem da Estrada Parque Indústria e Abastecimento (Epia). Políticas habitacionais realocaram as famílias. E muitas foram parar em novas regiões administrativas construídas bem longe do centro da capital, como Samambaia, fundada em 1989.

Os assentamentos acabaram com a favela, mas não com a determinação de catadores que insistiram em ficar. Escondidos pelo matagal, eram invisíveis aos moradores das quadras próximas. Mas passaram a incomodar quando novos empreendimentos brotaram na W5, com a construção do Noroeste, em 2011.

De olho no espírito natalino

A todo vapor, tratores e caminhões abriram caminho, revelando uma realidade desconfortável. Em vez do parque de 280 hectares projetado para ofertar  trilhas, viveiros e quadras poliesportivas, o que se descortinou foram barracos improvisados, crianças desassistidas e maltrapilhas, cavalos magros e maltratados, e lixo. Uma imensidão de lixo.

Não se sabe, oficialmente, quantas invasões como essa disputam com prédios elegantes e jardins bem cuidados as quadras nobres da capital. A Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos (Sedestmidh) não mapeia ocupações irregulares, mas informa que, em todo o Distrito Federal, cerca de 3 mil pessoas moram em espaços públicos. No fim do ano, famílias de cidades próximas — especialmente Goiás, Minas Gerais e Bahia — aumentam o contingente, na esperança de arrecadar doações de brasilienses imbuídos do espírito natalino.

Há um ano, 111 famílias ocupavam o Parque Ecológico Burle Marx. Para tirá-las de lá, o GDF ofereceu um acordo, com apoio da Arquidiocese de Brasília. Os catadores iriam para o terreno do Movimento Eureka, na 906 Norte, pertencente à Igreja Católica. Ficariam provisoriamente acampados em tendas, até receberem imóveis no Paranoá Parque, pelo programa Morar Bem. Esse é o condomínio onde mora a criança que, no mês passado, desmaiou de fome na escola — a mãe do menino, inclusive, foi uma das pessoas que saíram da invasão do Noroeste em troca do apartamento. De acordo com a Sedestmidh, 36 famílias foram contempladas com unidades habitacionais. As demais receberam auxílio alugel de R$ 600 por até 12 meses.

Aos poucos, porém, a invasão se recompõe. Na parte voltada para a W5 Norte, havia nove família até o mês passado. Agora, são 17. Em outubro deste ano, a Agência de Fiscalização do Distrito Federal (Agefis) retirou 16 barracos dentro do Parque Burle Marx — como a Constituição garante o direito de ir e vir, não se removem as pessoas, mas suas moradas improvisadas, feitas de lona, pedaço de madeira e papelão.

Nas desocupações, muitos acabam perdendo os pertences garimpados nas caçambas de lixo. Na operação de dois meses atrás, Ana Lúcia da Conceição, 48 anos, e Wilson Dias da Costa, 44, perderam o colchão de casal. O jeito foi fazer uma cama de papelão, montada em cima de sacos de lixo. “Não dá para dormir no chão direto, porque tenho medo de escorpião”, justifica a mulher, que há quase duas décadas vive no Cerrado.

O número exato de moradores na área do parque é desconhecido. Muitos catadores se embrenham pelo mato, formando pequenos núcleos. Para não chamar a atenção dos fiscais, eles dispensam novos vizinhos. “A invasão está tranquila. Quando chega alguém querendo morar aqui, a gente se reúne, conversa e diz pra não ficar, que é pra montar o barraco em outro lugar. Um fiscal mesmo disse pra fazer isso”, conta Elias Ângelo Gonçalves Dias, 35 anos de idade, 35 anos de Cerrado. “Nasci e fui criado aqui.”

Medo constante da violência

Para uma das beneficiadas no programa de habitação do GDF, o apartamento no Paranoá Parque não foi exatamente o sonho da casa própria realizado. Maria Tássia da Silva, 37 anos, voltou para o meio do mato. De segunda a sexta-feira, ela mora em um barraco de um cômodo, montado já bem longe da W5, e só vai para o novo imóvel nos fins de semana. O miniacampamento ocupado por seis famílias e cercado por sacos de lixo fica em uma pequena clareira aberta a aproximadamente 500m da quadra 309 do Noroeste, separada da quadra nobre pela vegetação alta, que encobre a existência dos catadores.

Histórias como as de Tássia ajudam a entender por que muitos invasores têm casa no DF, mas escolhem a precariedade de ocupações sem infraestrutura, rodeadas de sujeira, com a insegurança de terem os barracos levados pela fiscalização. Pelo imóvel de dois quartos do Morar Bem, a catadora paga à Caixa Econômica Federal R$ 80 mensais. Somando as despesas com luz, água e condomínio, ela afirma que gasta R$ 400 por mês com o imóvel.

Filho nascido na favela

Analfabeta, não sabe outro ofício além da catar lixo. Na expansão do Paranoá, porém, Tássia diz que não há como trabalhar com reciclagem — falta matéria-prima e falta comprador. Além disso, o medo da violência faz com que prefira enfrentar cobras, ratos e escorpiões do matagal a se expor aos seres humanos da região administrativa onde está seu apartamento, a segunda no ranking de homicídios, latrocínios e agressões seguidas de morte no Distrito Federal.

De janeiro a agosto, o total de ocorrências criminais no Paranoá — 1.205 — ultrapassou todo o ano de 2014. O mesmo em relação a 2015. Segundo as estatísticas oficiais da Secretaria de Estado de Segurança Pública e Paz Social, o número de assaltos, roubos, furtos, tráfico, sequestros e assassinatos registrados em oito meses na região também é maior que o notificado no mesmo período do ano passado. O filho de Tássia, Francisco, 9 anos, estuda na Escola Classe da 115 Norte e não quer saber de colégio no Paranoá: “Ele tem medo”.

Não que a favela seja isenta de riscos. “Já quase me mataram por causa de um celular. À noite, se o cachorro late, entro em pânico”, conta Cristina Gomes, 51 anos, 24 deles no Cerrado. Segundo a catadora, por duas vezes atearam fogo propositalmente no barraco em que vive com o marido, Bertoldo Buzz, 50. Elias Ângelo Gonçalves Dias, 35, que nasceu na ocupação, perdeu a mãe há cinco anos, assassinada no meio do mato alto. Ex-usuário de crack (hoje diz só consumir maconha e tabaco), ele tentou vingança e acabou preso por 11 meses e 25 dias pelo envolvimento na briga.

Ao sair da cadeia, Elias morou na rua e no esqueleto do Hotel Torre Palace, onde um cortiço se instalou em 2016, com pelo menos 166 famílias invadindo o que sobrou do prédio. Mas acabou retornando à favela. Ele se recusa a dizer por que a mãe foi morta. Uma vizinha, porém, entrega, baixinho: “Dizem que ela viu coisa demais”. Alguns moradores relatam que há traficante de drogas no Cerrado. À noite, é comum carros encostarem e de lá descerem jovens bem vestidos. “Já foi bem pior, a polícia entrava direto no mato e sobrava para os pais de família. Eu mesmo levei muita pancada”, diz um catador. “Agora está melhor, mas tem gente que vende droga, sim”, afirma outra moradora.

Tudo para fugir do aluguel

De acordo com o GDF, dentro de 15 dias, a Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos realizará uma abordagem social no Parque Burle Marx para mapear as pessoas em situação de rua no local.

Na parte da favela do Cerrado que fica voltada para a W5, há várias árvores de Natal feitas com material retirado do lixo. Ana Paula dos Santos reconhece que é uma forma de amolecer o coração de quem passa por ali. Mas também parece genuína a empolgação da jovem com a arrumação dos enfeites. Afinal, a invasão é o que ela conhece por casa. Dos 29 anos de vida, 26 foram passados no local, entre idas e vindas.

A catadora não reclama da vida. Aliás, diz gostar dela. “Prefiro estar aqui a pagar aluguel. Por mês, consigo até R$ 700 e não tenho patrão”, diz. Para juntar esse valor, ela empurra um carrinho com cerca de 50kg de lixo coletados pela Asa Norte, todos os dias. “Que nem uma égua, sozinha. Homem aguenta mais e faz uns R$ 1 mil”, diz. À noite, ela vigia carros no estacionamento de um supermercado para complementar a renda.

A infância de Ana Paula foi igual à das crianças que, hoje, vivem no lixão clandestino . “Estudei até a quinta série, mas eu parei. Faltava muita aula para trabalhar”, conta a jovem, que começou a cheirar cola na rua aos 8 anos. Agora, diz que não usa mais drogas e garante não guardar mágoas da mãe, com quem não tem contato. “Ela não cuidava direito da gente, ficava dias sem aparecer em casa e voltava grávida. Me botou pra pedir dinheiro, fui abusada na rua”, diz.

Hoje, a catadora vive sozinha em um barraco cercado de moscas, atraídas pelo forte cheiro de frutas podres, de lama e do “banheiro” construído ao lado (uma pequena estrutura de madeirite, sem vaso sanitário). Divide o local com os cachorros Marrone e Bob Esponja, e com as gatas Ágata, Marie, Sophie, Princesa e Daphine. Todos com coleira. “Amo os animais, meus amigos são Deus e os bichinhos. Quando me oferecem doação, prefiro que deem coisa para eles.”

Na montanha de lixo que se acumula em frente ao barraco, Kêmily Caroline, 3 anos, e Ítalo Vinícius, 1 ano e 8 meses, brincam — ele, seminu. Sentada em  um colchão que fica do lado de fora, Ana Lídia Pereira dos Santos Rodrigues, 25, observa os filhos e conta que está esperando mais um: Ariane Manuela, que deve nascer em fevereiro. Ela também é mãe de Ana Keroly, 11, e Ana Gabriela, 7.

Infestação de cobras e ratos

A jovem tem casa em Planaltina de Goiás, a 63km do Plano Piloto, mas não fica lá. “Não sei viver sem Brasília não. Quando vou para Brasilinha, fico em depressão. O Cerrado me tira do tédio, da raiva”, afirma. Ela é irmã por parte de mãe de Ana Paula. Devotada ao pai, que morreu há três meses aos 89 anos, Ana Lídia afirma que, na invasão, se sente perto dele. Assim como a meia-irmã, foi criada por lá e desde criança é catadora. Da ocupação, reclama apenas dos bichos. “Tenho muito medo de cobra, aranha, rato. Também tenho de raio.”

Nem todos os que passaram boa parte da vida no Cerrado se conformam em morar em barraco improvisado, no meio do mato. Entre idas e vindas, Cristina Gomes, 51 anos, está há 24 na invasão. Ela e o marido, Bertoldo Buzz Frommalz, 50, já conseguiram emprego formal, mas agora fazem parte dos 320 mil desempregados do Distrito Federal. Para ter condição de alugar uma casa em Pedregal (GO) a R$ 450, o casal passa a semana na favela, onde pode catar recicláveis.



Sem o fôlego e a saúde dos mais jovens — Cristina tem hérnia abdominal, bronquite asmática e pedra nos rins —, a renda com o lixo é pouca e, às vezes, não passa de R$ 500. Pelo quilo de cobre que retira de fios catados nas caçambas, Bertoldo diz que ganha R$ 12. “Isso aqui é e não é vida para ninguém. É, porque é de onde a gente tira o sustento. Mas não é, porque não tem nada de bom. Quando chove, fica igual a chiqueiro de porco.” De olho nos prédios do Noroeste que se avultam adiante, a catadora se compara a um cachorro. “Ali é para pitbull. A gente é vira-lata.”

Com pouco mais de um mês no ofício de catador, Walesson Rodrigues de Araújo, 22 anos, tem muita vergonha de mexer no lixo. O jovem foi criado na área rural de Campos Belos (GO), mas a dependência química da mãe e a violência física do pai o afastaram de lá. Veio para Brasília, conheceu a mulher, Maria Vitória, de 19, e resolveu ficar. Acostumado ao trabalho da roça, aqui não achou emprego, nem de garçom, posto que já ocupou. O jeito foi montar uma cabana de plástico e ripas no Cerrado.

Walesson está inconsolável. Diz que o que mais sente falta é de tomar banho de chuveiro. “Tenho muita vergonha até de pedir água para os outros. Aliás, eu não peço nada. Falei para a minha mulher que, se ela quiser pedir coisa na rua, que seja longe de mim, não aceito isso”, afirma. O lixo dá náuseas, diz. “Morro de nojo de enfiar a mão no lixo, morro de nojo dessa sujeira”, diz, apontando para os recicláveis acumulados na favela. Tem dia que não consegue almoçar, por causa do embrulho no estômago. “Mas não tem o que fazer. Onde vejo uma lixeira, eu estou enfiando a mão. Fico pensando, onde fui me meter?”

Humilhação quase todos os dias

Segundo o jovem, pior que a imundície é o preconceito sofrido na rua. “Em todo o canto que vou, o povo pensa que eu sou bandido, eu fico triste demais com isso. Fico me sentindo um burro, empurrando essa carroça, é tanta humilhação, tanto sofrimento”, diz. Noutro dia, Walesson puxou da lixeira, sem luva, papel higiênico usado. “As pessoas do prédio ficaram rindo de mim.”

O goiano não sonha alto. Diz que quando passa na frente de lojas, vê rapazes tão jovens quanto eles trabalhando como vendedores e deseja um emprego igual. “Fico sentado aqui, olhando o tanto de luz dos prédios (do Noroeste) e pensando naqueles caras tudo novinho, limpinho, e eu, no lixo. Eu só queria ter uma casa, sair para trabalhar, chegar à noite e tomar banho. Eu não sou porco. Quando tomo banho, as pessoas pensam que sou um cara normal e me falam até bom-dia.”

Situações como essa foram vivenciadas muitas vezes por José Maciel da Silva Filho, 34 anos, que passa a semana com a mulher, Maria Tássia da Silva, e o filho, Francisco, 9, em um pequeno núcleo formado por seis barracos a 500m de uma quadra nobre do Noroeste. “Tem muita gente que nos ajuda, dá sopa, traz doações. Mas tem muita gente que pensa que só porque a gente mora aqui, é bandido. Sou pai de família”, reclama. 

Os moradores do Cerrado sabem que, um dia, terão de sair dali em definitivo. Neste mês, o Instituto Brasília Ambiental (Ibram) e a Segeth devem concluir a definição das poligonais do Parque Burle Marx. “Na sequência, o instituto vai trabalhar o projeto do cercamento da Unidade de Conservação”, informou o GDF, em nota. Nos próximos quatro meses, a iluminação, a ciclovia e o cercamento devem estar concluídos. 

3 mil
Número de pessoas que moram em espaços públicos, segundo a Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos

280 hectares
Tamanho do projeto para o Parque Ecológico Burle Marx


“Tem muita gente que nos ajuda, dá sopa, traz doações. Mas tem muita gente que pensa que só porque a gente mora aqui, 
é bandido. Sou pai de família”
José Maciel da Silva,catador