A recepção do Hospital Dia, na 508 Sul, tem um entra e sai de pessoas ansiosas como qualquer outra unidade de saúde. Mas grande parte dos pacientes são mulheres altas, algumas com cabelos longos e sedosos, outras com cachos que mal chegam ao pescoço. O número de homens é inferior. Alguns entram de boné, outros revelam piercings e um até leva um skate para dentro do posto. Mesmo com corpos, vidas e estilos diferentes, todos enfrentam uma batalha semelhante: sentirem-se confortáveis no próprio corpo. Para ajudar nesse processo, que não é simples, a Secretaria de Saúde colocou em funcionamento o primeiro ambulatório especializado em atender transexuais e travestis do Distrito Federal. O Correio compareceu ao local na semana de inauguração e conheceu a história de quem lutou para que o projeto saísse do papel.
Nas redes sociais, a abertura da unidade dividiu opiniões. Alguns avaliaram que o ambulatório oferecia privilégio à população trans. Sentada em um banco em frente à entrada do posto, a transexual Ludymilla Santiago, 34 anos, usou a própria experiência para rebater as críticas. ;Não se trata de regalia. O que lutamos para ter é acompanhamento e tratamento específico durante o período de transição que passamos;, explica. Quem a vê hoje, em um cargo de gestora pública, com unhas pintadas em vermelho marcante e a maquiagem firme no rosto, não imagina os obstáculos enfrentados por Ludymilla. ;Comecei a minha transição aos 22. Antes disso, eu me considerava gay. Há 10 anos, tínhamos pouco conhecimento sobre a transexualidade. Então, nós mal entendíamos quem éramos;, conta.
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[SAIBAMAIS]Em 2007, Ludymilla fez parte de um grupo de apoio a transexuais e travestis do Hospital Universitário de Brasília (HUB), onde teve o primeiro contato com pessoas que passavam por uma luta semelhante à dela. ;É uma trajetória muito solitária, e existem muitos mitos em cima da transexualidade. Dizem que é uma doença ou que estamos sob poder de espíritos obsessores. E isso é muito cruel. Não sei nem se estaria aqui hoje se não fossem aquelas reuniões. A criação de um ambulatório não vai trazer uma cidadania total para trans e travestis, mas é um avanço enorme, ter um espaço como esse, dentro de um hospital público, onde podemos entender mais sobre nós mesmas;, avalia.
Os atendimentos do novo centro de saúde incluem psicologia, psiquiatria, endocrinologia, serviço social e apoio em enfermagem. Para o futuro, o objetivo é ampliar a atuação com profissionais de ginecologia e urologia. ;A minha maior demanda será para entender o efeito que os hormônios estão fazendo no meu corpo. Acabamos tendo que nos automedicar, pegando conselhos com amigas trans mais velhas, mas sabemos do risco que isso traz;, afirma Ludymilla. Mesmo assim, ela explica que, desde os 24 anos, quando passou a utilizar os hormônios diariamente, nunca cogitou parar. ;A preocupação é frequente, mas o anseio em poder, mesmo que minimamente, se sentir você mesmo, da forma que você acha que tem de ser, torna o medo muito pequeno;, explica.
O processo de transexualização de Nicole Queiroz, 23, é mais recente. Começou em agosto do ano passado. Nesta semana, ela participa do grupo de acolhimento e está ansiosa para, finalmente, ter um atendimento médico. ;Estou tão feliz com isso. Vai ajudar não só a mim, mas a muitas outras meninas e meninos que buscam ajuda na rede pública e não conseguem ou têm receio;, diz. Segundo Nicole, devido à dificuldade no atendimento na rede pública, transexuais e travestis com melhores condições financeiras ajudam as outras.
Modelo
Além da Secretaria de Saúde, o projeto recebe apoio da Secretaria de Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos (Sedestmidh), sendo pautado, principalmente, pela demanda de grupos sociais. O ambulatório segue o exemplo de casos de sucesso de outras unidades da Federação, como São Paulo, Goiás e Pernambuco. Paula Benett, 37, além de mulher trans, é assessora especial da Coordenação de Diversidade LGBT da Sedestmidh e destaca a importância da abertura do ambulatório. ;Ajudará a garantir que a população trans tenha o direito à saúde garantido. Atendimentos como os que são oferecidos são necessários para essa parcela da população, que, por falta de atendimento específico, vem colocando hormônio no corpo por conta própria, ficando sensível a diversos riscos;, alerta.
Sobre as críticas negativas, Paula acredita que sejam fruto da falta de informação. ;As pessoas não entendem que, se não houver o respeito às especificidades desse grupo, o serviço e o acolhimento não serão feitos com qualidade. Se uma travesti procura um hospital público e não tem nem o nome social respeitado, ela já está sofrendo uma violência de gênero;, conta. A opinião de Paula é compartilhada. Nicole conta que deixou de procurar atendimento médico por causa do preconceito. ;Existe o medo de não ter o nome social respeitado ou de ser alvo de alguma piada. Então, até para evitar uma situação constrangedora, eu só vou ao médico se for extremamente necessário;, afirma.
Ludymilla reforça a questão do constrangimento. ;Quando uma trans ou travesti vai ao médico, mesmo que ela se queixe de uma febre, sempre consideram que é fruto de uma doença sexualmente transmissível e a encaminham para o exame;, critica.
A reportagem não foi autorizada pela Secretaria de Saúde a participar das reuniões de acolhimento ou conversar com pacientes dentro do centro, para preservar as imagens e ajudar a criar um ambiente de confiabilidade. O ambulatório trans funciona de segunda a sexta-feira, das 7h às 12h, e das 14h às 16h. Pacientes podem ser encaminhados por meio das clínicas da família ou comparecendo ao Hospital Dia e agendando participação em um dos grupos de entrada.
Direito
Nome social é como pessoas trans e travestis preferem ser chamadas, mesmo que aquele não seja o que está oficialmente registrado na Carteira de Identidade. Em 30 de janeiro, o governador Rodrigo Rollemberg assinou decreto que reconhece que todos os servidores do governo e cidadãos atendidos por eles têm o direito de usar e ser reconhecido por seus nomes sociais.