Para entender a história do garçom, é preciso saber que ele é o mais velho de seis irmãos, nasceu e passou toda a infância em Santo Antônio do Descoberto (GO). Lá estudou o ensino fundamental e frequentou uma igreja evangélica junto à mãe e ao avô nos fins de semana. No fim da adolescência, saiu da igreja, se mudou para o Recanto das Emas, conheceu novos amigos e, com eles, vieram as drogas.
Aos 21 anos, Anderson se perdeu na criminalidade, deslumbrado por tudo o que aquele mundo ilusório oferecia. O menino da periferia chegou a faturar R$ 500 por dia vendendo drogas no Recanto das Emas. O dinheiro e a possibilidade de comprar o que nunca pôde ter, o deixava cada vez mais deslumbrado. Mas não durou muito. Anderson foi pego pela polícia por tráfico de drogas.
O dia em que os oficiais o levaram para a prisão nunca sairá da memória. Era maio de 2012. ;Dava comida para a minha filha quando eles falaram que estavam lá para me levar. Eu sabia que esse dia ia chegar, mesmo assim, foi um momento de tristeza. Minha então esposa levou nossa filha para casa da vizinha para ela não me ver indo embora;, lembra.
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No total, Anderson foi condenado a cinco anos e sete meses de prisão. Cumpriu dois anos em regime fechado e o restante da pena no semiaberto. Ele recorda com tristeza os anos de cadeia, mas reconhece que o tempo que passou na prisão serviu para que ele refletisse sobre o que queria da vida. ;De certa forma, tem mal que vem para o bem. Eu refleti bastante lá dentro;, diz.
Na Papuda, viu a maior parte dos criminosos que atuavam com ele morrer e é por isso que se considera um sobrevivente em busca de um recomeço. Anderson, deixou a prisão em setembro do ano passado, conseguiu um emprego como garçom e recentemente a aprovação no vestibular de direito. ;Para algumas pessoas, a cadeia também pode ser uma lição, eu aprendi que podia tomar um outro caminho;, comenta. ;Estou estudando, trabalhando e vi que é possível mudar de vida e construir uma nova história;.
Nova carreira
Atualmente, trabalha no gabinete da Defensoria Pública do Distrito Federal como garçom. Foi depois de observar o trabalho de alguns defensores que tomou coragem para voltar a estudar. E escolheu o direito. Uma das inspirações de Anderson para trilhar a nova carreira, o defensor público Rildo Paulo da Silva, olha com carinho para a história de sucesso. ;Ele é uma ótima pessoa, cortês, gentil. Sempre foi assim. Eu via que ele era interessado e queria estudar. Acho que o fato de ele ter sido agraciado com essa aprovação no vestibular é Deus apontando o dedo pra ele e dando uma oportunidade para crescer. Nada na vida é por acaso;, comenta o defensor público.
O garçom deve começar o curso de direito em agosto e já faz planos para o futuro. ;Quero estudar, melhorar a vida e amparar outras pessoas, assim como eu fui acolhido e ajudado;, sonha. De tudo o que viveu, um aprendizado: ;Eu sou um ser humano, seres humanos erram, mas todos as pessoas merecem uma segunda chance. É levantar a cabeça, reconhecer a realidade e seguir em frente;.
No Distrito Federal, a Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso do DF (Funap), entidade vinculada à Secretaria de Segurança Pública e Paz Social (SSP/DF), é o órgão responsável por desenvolver projetos e ações com foco na reintegração social dos apenados do sistema penitenciário. Atualmente, mais de 1,2 mil reeducandos (como são chamados os sentenciados em processo de ressocialização) estão alocados no mercado de trabalho.
;O que essas pessoas precisam é de uma oportunidade. De nada adianta todo o esforço para melhorar o sistema prisional brasileiro, se ao libertar-se o homem, a sociedade o rejeita, o estigmatiza, o repugna e o força a voltar à criminalidade por absoluta falta de opção;, diz o diretor-executivo da Funap, Nery do Brasil.
Vida nova
Anderson é um dos exemplos de pessoas que conseguem sobreviver ao sistema prisional brasileiro e se reintegram à sociedade, mesmo após cumprir penas em celas superlotadas, sentir fome, frio, enfrentar diversas humilhações e lutar pela vida. Na análise do assessor jurídico da Pastoral Carcerária, Paulo Malvezze, infelizmente, não há muitos casos bem sucedidos de ex-detentos reinseridos na sociedade.
É que muitas vezes, deixar o crime para trás e recomeçar uma nova vida não é apenas uma questão de força de vontade. Há marcas profundas que essas pessoas vão carregar para o sempre. Para se tornar novamente um cidadão comum, um ex-detento precisa provar algo que não está no papel: a vontade de refazer a sua história. Encontrar um trabalho e ser aceito de volta no seio familiar são os principais obstáculos enfrentados pelo egresso do sistema prisional, segundo Malvezze.
Talvez esse seja o motivo de o índice de reincidência criminal no Brasil ser um dos mais altos do mundo. Dados do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (Depen/MJ) contabilizam 600 mil detentos no sistema penitenciário brasileiro. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos (2,2 milhões), da China (1,7 milhão) e da Rússia (676 mil). Entre 70 a 80% dos ex-internos voltam a cometer crimes. Por isso, o emprego formal é o colete salva-vidas para não afundar na vida criminosa novamente.
;O comum é a pessoa simplesmente sobreviver e se inserir no mercado de trabalho informal, já que há muita dificuldade para ex-detentos, até para acessar serviços públicos básicos de saúde e educação;, relata. Segundo o especialista, a vida de um ex-detento, é difícil e mostra como o sistema prisional é feito para além do cárcere. ;Serve para estigmatizar as pessoas, dificilmente elas vão conseguir se livrar das marcas de um sistema que é feito para segregar;, finaliza.
Trabalho entre grades
Presidiários trabalhando
2008 85 mil
2009 95 mil
2010 98 mil
2011 110 mil
2012 112 mil
2013 120 mil
2014 115 mil
- Desse número, 38 mil atuam como apoio à unidade prisional, em atividades como limpeza, a maioria não remunerada;
- Os outros 77 mil trabalham em empresas privadas conveniadas ou no governo;
- 78% das prisões não têm espaço para oficinas de trabalho.
*Dados de 2014, quando foi feito o último levantamento sobre a população carcerária pelo Ministério da Justiça