Amargando a pior crise hídrica da história, o Distrito Federal vê multiplicarem os casos de mau uso e desperdício de água todos os dias. Em meio ao racionamento, que corta o abastecimento por 24h a cada seis dias, as ligações clandestinas, os "gatos", na rede da Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb) causam preocupação pela velocidade com que se alastram pela cidade. Os registros deste tipo de crime mais que dobraram. Só neste ano, cerca de mil ligações clandestinas de água foram desfeitas pela companhia em todo o DF. O número representa um aumento de 108% na comparação com o mesmo período no ano passado, quando a Caesb retirou 480 irregulares na rede de abastecimento. A companhia estima que existam, em todo o DF, cerca de 38 mil ligações com potenciais consumos não autorizados, desviando 680 mil metros cúbicos de água por mês, um prejuízo mensal de R$ 2,7 milhões.
[SAIBAMAIS] Para o gerente de vistoria e fiscalização da Caesb, Geraldo Cruz, o aumento na quantidade de casos de ligações clandestinas na rede de água se deve, além da ousadia de consumidores individuais ou empresariais que querem consumir água sem pagar os impostos, ao aumento da fiscalização por conta da crise hídrica no DF. "Para ajudar no controle e coibir irregularidades, dobramos, inclusive, o efetivo de fiscais. Eram 14 (agentes) e passamos a ter 34", explicou. As ações, segundo ele, ocorrem todos os dias em diferentes cidades.
A ligação clandestina de água é crime comum, segundo a lei penal (leia O que diz a lei). No entanto, de acordo com Geraldo Cruz, nem todos os casos resultam em ocorrência policial ou abertura de processo criminal, sendo tratados apenas administrativamente pela Caesb. "Identificada a ligação, há, em alguns casos, o registro da ocorrência policial e, paralelamente, ocorre o processo administrativo na Caesb. Mas nem todas são o caso de registro de ocorrência." Segundo dados da própria companhia, mais de 200 ocorrências do crime resultaram em ocorrências policiais este ano.
Sem punições mais severas, esse tipo de crime segue causando impactos na gestão hídrica, pois tendem ao uso desregrado da água. As intervenções nas redes por particulares causam muitos vazamentos e agravam o quadro apocalíptico da escassez hídrica no DF. Segundo o professor Gustavo Souto Maior Salgado, do Núcleo de Estudos Ambientais (NEA) da Universidade de Brasília (UnB), a legislação ambiental do Brasil é bastante moderna, mas precisa ser aplicada com mais rigidez. "Não basta multar. Nós temos a legislação, mas só isso não basta, porque muitas pessoas preferem pagar a multa e continuar com a irregularidade", lamentou.
Ameaças no curso d;água
Outra prática contra os recursos hídricos da cidade e vista com bastante preocupação é a captação irregular de água. Diferentemente das ligações clandestinas (que usam, como base, as ligações da própria Caesb), estas ocorrem quando são feitas intervenções para retirar água dos mananciais (rios, lagos, córregos) sem a autorização dos órgãos responsáveis. Segundo dados da Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do DF (Adasa), de janeiro a junho deste ano, foram registrados 284 crimes do tipo. A agência não possui, no entanto, dados comparativos dos anos anteriores, "porque trabalhou com foco em campanhas educativas convidando a população para a regularização de captações de água", conforme afirmou ao Correio. "Nos dois anos em que as campanhas de regularização foram feitas, foi possível conhecer mais de 1.500 usuários dos recursos".
Assim como nos casos de ligações clandestinas na rede da Caesb, as captações irregulares no curso d;água também se restringem mais a registros como infrações administrativas. Ao longo deste ano, o Batalhão Policial Militar Ambiental (BPMA) afirma ter encontrado, durante monitoramentos, 24 ocorrências de captação irregular de água, desvio do curso d;água ou instalação irregular de poços artesianos, alguns dos crimes ambientais mais comuns aos recursos hídricos. Em quase todos os casos, as pessoas não têm autorização. A Delegacia Especial de Proteção ao Meio Ambiente e à Ordem Urbanística (Dema), da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), registrou 17 ocorrências, sendo que em duas houve flagrante e os responsáveis assinaram Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) e foram liberados.
Segundo a delegada-chefe da Dema, Marilisa Gomes da Silva, a captação irregular de água é vista como crime pela prática comum no DF, mas não existe em lei especificamente. "O que nós temos é a aplicação do artigo 55 (da Lei n; 9.605/98, que trata de crimes ambientais), que fala da extração de recursos minerais, que podem ser areia, argila, água, cascalho e outros. Há também o artigo 40 (da mesma lei), que vai depender da vazão de água captada ou desviada para caracterizar o crime de dano ambiental".
Ela destaca que há dificuldade em coibir esta prática no DF, pois muitas captações irregulares no curso de mananciais são antigas, já que a prática é comum nas áreas rurais do DF. "Às vezes a PM, em suas diligências, identifica a captação e somos oficiados, mas não há a situação de flagrante. Ocorre de irmos ao local e constatar que a pessoa nem sabe quem fez a captação porque já existe há muito tempo", diz. Outro fator que atrasa o processo é em realização ao tempo da perícia, já que só ela é capaz de apontar há quanto tempo existe a irregularidade. "Até a gente conseguir apurar quem fez a captação, o crime já prescreveu. E há casos em que a captação irregular existe há mais de 20 anos", explica.
Dano ambiental
Diversos casos flagrados pelos órgãos ambientais nas áreas rurais são de donos de propriedades que represam a água para atividades de lazer e, principalmente, para a piscicultura. "Nos casos de criação de peixes, eles retiram muita água, a vazão é grande, e para represar o recurso desta maneira é preciso autorização e há dano ambiental de acordo com o artigo 40", alerta a delegada Marilisa Gomes.
Em áreas urbanas, a preocupação é maior por conta do crescimento desenfreado de loteamentos irregulares. "As pessoas que moram em lotes regularizados, escriturados, pagam o preço de quem invade. O parcelamento irregular é a maior causa também desses crimes contra o meio ambiente, porque para lotear você precisa tirar a vegetação, compactar o solo, aterrar nascentes. A pessoa destrói o meio visando lucros e isso é muito grave", conclui. É a mesma opinião do professor Gustavo Souto Maior, da UnB. Para ele, a fiscalização aos uso dos recursos hídricos no DF precisa ser diária, já que a falta de água nas torneiras dos brasilienses segue sem previsão de acabar. "A crise hídrica que vivemos agora levará muito tempo até reencontrarmos o equilíbrio. O racionamento tende inclusive a nos deixar sem água por mais dias. Obviamente, as fiscalizações devem ocorrer de forma mais intensificada", concluiu.
HISTÓRICO
Neste ano, a Polícia Militar atuou em várias ocorrências de captação irregular de água. Veja algumas:
22 DE MARÇO
No Dia Mundial da Água, uma equipe do Batalhão de Aviação Operacional da Polícia Militar do DF (BAvOp) fazia um sobrevoo na área rural Leste da Fercal e observou pontos de captação irregular de água no Córrego Taboquinha, em Área de Proteção Permanente (APP). Policiais se deslocaram até a fazenda Valdemar, próximo ao km 6 da DF-205, no Núcleo Rural Boa Vista, onde foi constatado uso indevido de água em tanques para a criação de peixes. De acordo com o batalhão, a prática ocorria sem licença. Um homem foi conduzido para a 13; Delegacia de Polícia (Sobradinho).
11 DE ABRIL
Policiais militares do Grupo de Operações no Cerrado (GOC), do Batalhão Ambiental da PM, flagraram dois casos de captação irregular no Recanto das Emas. Eles faziam patrulhamento da área rural onde flagraram, no altura do km 3 da DF-280, dois tanques utilizados para criação de peixes em uma Área de Proteção Permanente (APP), com água coletada do Rio Samambaia. Além de o responsável não ter autorização para a prática, os rejeitos do criadouro irregular eram despejados no rio sem nenhum tratamento. O homem foi encaminhado à Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (Dema), onde foi autuado. Durante a ação, os policiais encontraram outra irregularidade, na chácara vizinha. Foi identificado o represamento de um dos afluentes do rio. O proprietário também não possuía licença ambiental e foi levado à Dema, onde foi registrado o flagrante.
21 DE ABRIL
Um ponto de captação irregular de água foi identificado por policiais do Batalhão Militar Ambiental durante patrulhamento em pontos da Vila Telebrasília. A irregularidade ocorria no ponto de captação de água da Adasa Ribeirão Riacho Fundo. Um homem armazenava água em um caminhão quando foi abordado. O suspeito apresentou, segundo a PM, um documento de outorga da Adasa, que estava vencido, e o veículo também não tinha o adesivo do órgão autorizador com o respectivo prazo de validade da outorga. Ele foi encaminhado à 1; Delegacia de Polícia (Asa Sul).
12 DE MAIO
Uma captação irregular de água, com atividades potencialmente poluidoras, foi identificada em um córrego na Ponte Alta de baixo, próximo a VC-351, no Gama. No local, policiais do Batalhão Ambiental flagraram a existência da irregularidade para abastecimento de tanques de peixes. Eles também constataram a degradação da vegetação ciliar para construção dos tanques. A água que passava pelo sistema irregular voltava contaminada de dejetos para o córrego. O proprietário da chácara não foi localizado na hora do flagrante e o caseiro foi levado na condição de testemunha.
18 DE MAIO
A Polícia Militar fazia um sobrevoo sobre a DF-440 e descobriu um ponto de captação de água na chácara 43, Rota do Cavalo. A Área de Proteção Permanente (APP) era utilizada, segundo constataram os policiais, para atividades de piscicultura. O proprietário foi conduzido à Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (Dema), onde foi autuado.
27 DE MAIO
Em uma Área de Proteção Permanente (APP), militares do Batalhão Ambiental faziam uma patrulha na região do Núcleo Rural Nova Bethânia, na BR-251, em São Sebastião. A instalação irregular estava em um córrego originário de uma Área de Proteção Permanente (APP) e servia para abastecer um lago artificial usado para o lazer e recreação dos usuários da propriedade. No curso do córrego, os policiais também encontraram obras como muros e cascatas, proibidas conforme legislação ambiental. Como o proprietário do imóvel não foi localizado no momento do flagrante, o caseiro foi conduzido como testemunha à 6; Delegacia de Polícia (Paranoá).
5 DE JUNHO
Durante uma ação da Polícia Militar do DF com agentes da Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb) foi identificado crime de furto de água na QNR 1, próximo ao terminal rodoviário de Ceilândia Norte. Segundo a PM, a captação irregular contava com mais de 700m de tubulação.
13 DE JUNHO
Após uma denúncia, a polícia foi acionada e identificou, em uma chácara no Núcleo Bandeirante, a criação de peixes e produção de alevinos em tanques onde água para abastecimento era proveniente de um manancial dentro de uma Área de Proteção Permanente (APP). No total, foram encontrados cinco tanques de tamanhos consideráveis, além de duas ilhotas para contemplação usando água da nascente sem as autorizações, licenças, permissões ou concessões dos órgãos competentes. O proprietário foi conduzido à Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (Dema), para registro e providências cabíveis.
17 DE JUNHO
Diversas irregularidades foram encontradas por policiais militares em uma Área de Proteção Permanente (APP) onde está o córrego Ipê/Coqueiros. Além de captação irregular por meio de uma bomba, que abastecia tanques usados para lazer e criação de peixes, os policiais encontraram, ao longo do curso do córrego, obras proibidas. O proprietário do imóvel não foi localizado, mas o caseiro foi conduzido à 21; Delegacia de Polícia (Taguatinga Sul), como testemunha.
23 DE JUNHO
Uma patrulha na Área de Proteção de Mananciais Ponte de Terra, no Gama fez com que policiais encontrassem uma plantação de Cannabis Sativa, maconha, próximo ao Córrego Ponte de Terra. Durante a ocorrência, os militares também encontraram dois pontos de captação de água irregulares. A PM não conseguiu identificar os autores, mas os locais foram fotografados e foram tiradas as coordenadas geográficas e encaminhadas à Adasa. Ainda durante o policiamento ambiental na região, um caminhão pipa foi flagrado captando água fora do horário permitido, que foi notificado. Nas proximidades, os PMs também identificaram a construção de um poço artesiano no Núcleo Rural Ponte Alta Norte. Três pessoas, responsáveis pela obra, foram conduzidas a uma delegacia, por não terem documentos que autorizassem a obra.
O QUE DIZ A LEI
A ligação clandestina de água é crime comum de furto qualificado pelo emprego de fraude (art. 155, ; 4;, II, do Código Penal). Além das penalidades por lei, quem pratica o delito está sujeito a multa que varia de R$ 1.200 a R$ 76 mil. Segundo a Caesb, a pessoa também é obrigada a pagar a água consumida irregularmente e os reparos na rede de abastecimento. Os danos aos recursos hídricos (como desvio de curso d;água, captação irregular e poço artesiano irregular) podem ser enquadrados em dois artigos da Lei 9.605/98. O artigo 40, onde é crime ambiental ;causar dano direto ou indireto às Unidades de Conservação e às áreas de que trata o art. 27 do Decreto n; 99.274, de 6 de junho de 1990, independentemente de sua localização;, com pena de um a cinco anos de prisão, além de ser inafiançável; e o artigo 55, que trata como crime ;executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida;, com pena de detenção, de seis meses a um ano. A resolução 163/06 da Adasa também impõe multas que podem variar de R$ 100 a R$ 100 milhões, dependendo da gravidade da infração.
Para saber mais
Neste ano, por conta do agravamento da crise hídrica, as regiões próximas aos sistemas do Descoberto e de Santa Maria têm fiscalizações reforçadas, com foco no desvio e captação irregular de água, ocupação irregular do solo e o desmatamento. As estratégias do Batalhão de Polícia Ambiental (BPMA), da Polícia Militar, promovem ações educativas e de fiscalização focadas nas áreas próximas a nascentes, rios e córregos que cortam o Distrito Federal, com parceria da Adasa. O BPMA iniciou um trabalho específico dos sistemas do Descoberto, de Santa Maria e na Reserva Ecológica de Águas Emendadas, responsáveis pela água consumida no DF. No ano passado, foram registradas 717 ocorrências relacionadas a crimes ambientais no DF, que incluem poluição e degradação de rios, córregos e contaminação do solo (dano ambiental), crimes contra unidades de conservação, contra a fauna e flora, ocupação irregular do solo, entre outros. As denúncias podem ser feitas pelo número 99351-5736.