Dez anos após a Justiça lhe dar o direito de pertencer ao sexo feminino, a vida de Maria Luiza da Silva ainda é marcada por preconceitos, humilhações. Aos 56 anos, ela ainda luta para voltar de onde a expulsaram por causa do gênero: a Aeronáutica. Venceu as batalhas jurídicas na primeira e segunda instâncias. Falta o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Enquanto isso, a cabo continua morando no Cruzeiro Novo, indo às missas aos domingos, praticando fotografia e pintura. A novidade é que a guerra sem fim da primeira transexual das Forças Armadas do Brasil vai ganhar os cinemas no primeiro semestre de 2018, por meio de um longa-metragem de uma hora e meia de duração.
Esse drama brasiliense vai ser contado em um filme dirigido por cineasta nascido e criado na capital. Formado da Universidade de Brasília (UnB), Marcelo Díaz ganhou notoriedade por realizar documentários sobre personagens da cidade, como o artista plástico Galeno e o mecânico José Perdiz, que transformou sua oficina em teatro. ;O filme sobre a Maria Luzia é uma sequência da minha carreira, marcada por histórias de transformação. Maria Luiza tem uma história de busca de respeito, afeto e felicidade. Simples e profunda. O filme vai mostrar isso e tocar na questão de gênero nas Forças Armadas. Vai tocar muita gente;, resume o diretor de 42 anos, sobre o seu primeira longa-metagem.
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Maria Luiza nasceu José Carlos, em Ceres (GO), mas nunca se reconheceu homem. E isso lhe trouxe enormes transtornos na carreira militar. Em 2000, quando era cabo da Aeronáutica, veio o parecer do Alto Comando, que a diagnosticou como transexual, ;incapaz, definitivamente, para o serviço militar;, mas ;não inválido, incapacitado total ou permanentemente para qualquer trabalho;. À época, ela, com o nome masculino, servia na Base Aérea de Brasília, onde era mecânico de aeronaves. A decisão do comando culminou na aposentadoria (reforma, na linguagem militar) a contragosto, com metade do salário (o soldo). Acuada, sob ameaça para não tornar a decisão pública, pediu ajuda ao Ministério Público do DF.
O promotor Diaulas Ribeiro, da Promotoria de Defesa dos Usuários de Saúde (Pró-Vida), comprou a briga. Em meio à guerra judicial, em 2005, ela se submeteu à cirurgia de mudança de sexo. Dois anos depois, a juíza Lília Simone Rodrigues da Costa Viera, da 1; Vara de Família do Tribunal de Justiça do DF, deu a sentença que reconheceu o direito de Maria Luiza ; nome escolhido antes da cirurgia ; pertencer ao sexo feminino. O juiz José Batista Gonçalves da Silva, da Vara de Registros Públicos do DF, acolheu a manifestação do MPDFT e determinou a alteração do nome e a averbação à margem do assento de nascimento. Maria Luiza tinha uma nova certidão. Em 2010, outra grande conquista. O juiz Hamilton de Sá Dantas, da 21; Vara Federal, mandou a Aeronáutica reintegrar Maria Luiza. Mesmo que na reserva, com soldo igual aos militares nunca reformados. A cabo, porém, não voltou à ativa, em função da idade. Completou 49 anos. O tempo de serviço, 30 anos adotados nas Forças Armadas, já havia transcorrido. Por fim, a Aeronáutica recorreu ao STJ.
Estereótipos
Com o salário pela metade, Maria Luiza ainda luta para permanecer no apartamento funcional de dois quartos que a Aeronáutica também quer lhe tomar. Decisão liminar lhe garante a ocupação do imóvel até o processo se esgotar. Na tarde de quinta-feira, uma equipe do Correio encontrou Maria Luiza e Marcelo Díaz. A cabo apresentava a mesma fisionomia e o mesmo comportamento de quando o drama dela veio à tona, por meio do jornal. De calça jeans, blusa florida sem decote, tamancos azuis claros, unhas pintadas de rosa claro, brincos e batom da mesma cor, ela falou das batalhas judiciais, do cotidiano e do filme.
Maria Luiza falou ainda do sofrimento com a prolongação de sua ação judicial. ;Entrei na Aeronáutica aos 18 anos. Dediquei-me ao meu trabalho, servi às Forças Armadas de maneira exemplar. Fiz muitos cursos e, antes de ser reformada, era professora, ensinava o que sabia. E queria continuar assim, pois, como o próprio laudo da Aeronáutica diz, sou perfeitamente capaz para o trabalho;, ponderou. Marcelo também comentou a morosidade do processo da sua personagem: ;Pensei em filmar a história de Maria Luíza quando li as primeiras matérias do Correio. A produção da obra teve início há seis anos. Pensava que, em 2017, poderia filmar Maria Luiza de farda, na Aeronáutica, recebendo alguma homenagem. Infelizmente, não é isso o que vamos ver. É a vida real.;
Com o nome provisório de Maria Luiza, o longa de Marcelo Díaz começou a ser filmado em agosto do ano passado. ;Não há artistas. A Maria Luiza é a protagonista. Há depoimentos do promotor (Diaulas), dos juízes e de militares que serviram com ela. Todos, aliás, só a elogiaram. Claro, também houve muita gente que se recusou a gravar. Até hoje, não temos qualquer posicionamento da Aeronáutica. Nem uma nota oficial. Muito menos autorização para filmar onde ela serviu;, conta o diretor. A obra, segundo ele, está 80% concluída. Falta o acabamento. ;Temos recursos do FAC (Fundo de Amparo à Cultura, do GDF), mas ainda falta um pouco de dinheiro, por isso, vamos lançar uma campanha de financiamento pela internet;, anuncia Díaz. Ele ainda sonha com uma cena de final feliz. ;Seria uma grande oportunidade de as Forças Armadas reverem a sua oposição. Sonho com a cena da Maria Luiza recebendo alguma homenagem, fardada, batendo continência, em um quartel.;
Como ajudar
Informações sobre como participar da campanha de financiamento do filme Maria Luiza na página da produtora Diazul no Facebook: facebook.com/diazuldecinema
ARTIGO
E a vida real virou história de cinema
Marcelo Abreu
Início do ano 2000, quase fim de tarde. Fui chamado à sala do então diretor de redação do Correio. Havia uma missão. O então promotor da Promotoria de Defesa da Saúde do Ministério Público do DF, Diaulas Ribeiro, estava com um caso inédito. Único no país. E até hoje permanece único. O primeiro caso de transexualidade das Forças Armadas do Brasil. ;Essa matéria é muito séria e exclusiva. Você tem uma bomba em suas mãos;, disse-me o diretor. Fui. Sabia que a missão não seria fácil. E não foi.
Na sala do promotor, a primeira das muitas vezes que o encontraria, estava um cidadão magro, tímido e nitidamente acuado, sofrido, mas decidido. José Carlos da Silva, cabo da Aeronáutica, então com 41 anos, separado, uma filha, tinha um laudo na mão. Um laudo que abalou a estrutura militar, tão rígida e conservadora.
No documento do Alto Comando da Caserna, a que o Correio teve acesso naquele fim de tarde, o parecer da junta médica das Forças Armadas: ;Atrofia testicular por provável ação medicamentosa. Transexualismo;. E a decisão de afastá-la de vez da corporação, depois de 22 anos de atividades como mecânico de aeronave, condecorado pela corporação, sem nenhuma falta ou mácula na vida militar: ;Incapaz, definitivamente, para o serviço militar. Não é inválido. Não está impossibilitado total ou permanentemente para qualquer trabalho. Pode prover os meios de subsistência. Pode exercer atividades civis;.
O Correio contou, então em 2000, com exclusividade, a primeira matéria, que viraria depois uma série de reportagens. Os leitores, ainda num mundo sem rede social, manifestaram-se por e-mail e cartas ao jornal. A maioria foi de apoio ao drama do cabo. A imprensa, local e nacional, correu atrás da história.
Afastado da caserna contra sua vontade, e alegando ter sofrido ameaças se insistisse em tornar a história pública, José Carlos estava ali para começar o processo de mudança de sexo. Seria, certamente, a luta mais difícil da sua vida. Por dois anos, submeteu-se a uma série de exames com psicólogos, psiquiatras e cirurgiões. Tempos depois, a conclusão da junta multidisciplinar do Ministério Público: o paciente era psicologicamente uma mulher aprisionada num corpo de homem. Com a cabeça feminina, rejeitava a genitália masculina. Era, de fato, transexual.
Em 2005, aos 46 anos, veio a cirurgia de mudança de sexo, feita com autorização do Ministério Público do DF, num hospital público de Goiânia. Recuperou-se. E começa uma nova batalha judicial, agora para mudança de nome e sexo, em todos os documentos. Em março de 2007, uma sentença inédita e comovente de uma juíza bem jovem da 4; Vara de Família, Lília Simone Rodrigues da Costa Vieira, então com 30 anos, autorizou a mudança do sexo no registro civil.
Na sentença, a juíza escreveu: ;O sexo é atributo da personalidade, sendo dela parte integrante. Negando-se o direito de alguém ter o sexo correspondente ao órgão que atualmente possui é sonegar o direito de ser feliz, de ter esperança, de acreditar na vida, de viver com dignidade;.
Contrariando inclusive alguns de seus pares, a juíza continuou: ;Ademais, rechaçar o direito do requerente em ter seu sexo alterado em seu registro civil é plasmar injustiça flagrante, pois o autor, conforme informado nos autos, sempre se sentiu mulher, se veste como mulher e, além disso, repito, já retirou a genitália masculina que possuía;.
Foi a primeira sentença nesse sentido no DF. José Carlos não mais existia. De fato e de direito, nasceu Maria Luiza. Luiza em homenagem à sua avó. E Maria pela devoção fervorosa à Nossa Senhora. O Correio contou, novamente com exclusividade, mais esse capítulo na vida de Maria Luiza.
Depois, vieram tantas outras matérias. A nova vida fora da Aeronáutica, o recomeço, a luta para ser aceita na sociedade e o desejo de voltar à Aeronáutica, para a mesma função, vestida e aceita como mulher. Essa matéria ainda não foi escrita. E provavelmente nunca será.
Tempos atrás, ainda no início dos anos 2000, o diretor do filme, cineasta Marcelo Díaz, me ligou. Falou sobre a vontade de levar a história ao cinema. No fim do segundo semestre do ano passado, a produtora da Diazul de Cinema, Daniela Marinho, entrou em contato comigo. Contou que a história de Maria Luiza estava sendo produzida. Há pouco mais de um mês, o cineasta marcou o primeiro encontro comigo. No café, ele me disse: ;Resolvi contar a história da Maria Luzia depois que li a sua primeira matéria no Correio. Todas as suas reportagens me ajudaram no roteiro;.
E percebi que a saga de Maria Luzia foi mais longe do que eu imaginava. Ganhou cor, luz, música, plasticidade, mesmo diante de tanta dor, sofrimento e, às vezes, completa escuridão. A arte, de verdade, neste caso, imitou a vida com fidedignidade. Ela mesma será a atriz principal da sua história. Não haverá nenhuma ficção. Nem licença poética. Será a vida contada em lágrimas e muita coragem. Uma vida de alguém cuja maior transgressão foi decidir renascer. Que emocione os espectadores.