O amanhecer de ontem na Quadra 61 do Setor de Chácaras Santa Luzia, área carente da Estrutural, foi cinematográfico. As câmeras, as entrevistas e as muitas visitas destoavam da rotina de famílias muito pobres que passam a maior parte do tempo esquecidas. Um sem-número de gente assistia àquele final feliz. Hoje, Jhony completa 15 dias de vida, mas seu drama é uma das histórias mais comentados da cidade.
;Ele não é lindo?;
Sentada na cama ; uma base de madeira e dois colchões de solteiro amarrados ; Sara amamentava Jhony. O pai observava. ;Ele não é lindo?;, perguntou a mãe, com um sorriso tímido, à equipe do Correio. Ela ainda se recuperava do susto, mas, apesar do cansaço, nem parecia estar de resguardo pós-parto. Tímida, com pouca escolaridade e sem o costume de revelar detalhes da vida, Sara desabafou: ;Aos poucos estou mais tranquila. Isso não quer dizer que não tenha raiva do que fizeram;.
O pai do bebê chegou sorridente. Sentou-se onde o sol iluminava o ambiente, graças a uma fresta entre as tábuas. ;A melhor coisa é ter meu filho e a minha esposa em casa. Passei dois dias de muita revolta, mas isso está sendo recompensado;, ressaltou. Era a primeira vez que Jhony dava entrevista sobre o crime. Ele pediu um exemplar do Correio, para ver as reportagens sobre o caso.
Desde quando a criança foi sequestrada pela ex-estudante de enfermagem Gesianna de Oliveira de Alencar, 25 anos, o jovem ficou mergulhado em sua revolta, em silêncio. ;Uma pessoa dessas não merece perdão. Ela tentou construir a felicidade dela destruindo uma família. Não se pode acreditar que ela tenha coração. Ninguém sabe como o meu filho ficou, a fome que passou;, comentou emocionado. Nas 20h em poder de Gesianna, o bebê perdeu 470 gramas. Sara falou pouco sobre o assunto. Ainda é uma ferida aberta. Desviou das perguntas sobre a sequestradora, mas foi enfática: ;Tenho raiva, muita raiva. Quero Justiça;.
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Pobreza extrema
O acesso à casa de Jhony é complicado. Em meio à poeira e ao lixo, uma rua aparece distante. O endereço do recém-nascido é um dos últimos do setor, que lembra o primeiro ano da invasão da Estrutural, elevada à região administrativa recentemente. Os dois cômodos em madeirite nem sequer têm água encanada. O esgoto é dispensado em uma fossa a poucos metros da porta de entrada. Eletricidade chega por meio de gambiarras, que põem em risco os moradores. O calor é insuportável dentro do barraco.Na cozinha improvisada, um fogão, duas panelas e pouquíssimos mantimentos. Ontem, só havia feijão, milharina, açúcar, um punhado de arroz e um frasco de óleo quase vazio. A família não tem geladeira nem filtro de água.
A renda da família vem do vizinho lixão, prestes a ser desativado. A soma do que se ganha o mês inteiro é menos que um salário mínimo (R$ 987). ;Não vou dizer que é fácil, mas é como temos condição de viver;, ressaltou o pai. No imóvel precário, com cerca de 40 metros quadrados, o banheiro é separado por uma cortina. O piso de terra batido é coberto por recortes de tapete, resgatados do lixão. ;Minha renda depende de quanto eu arrecado na reciclagem;, completou o pai.
O cenário de miséria não incomoda Sara. Ela não elenca sonhos, mas tem um desejo, simples para os pais de classe média brasiliense, mas distante para uma família do Setor de Chácaras Santa Luzia: ;Sabe aqueles quartos de bebê de televisão? Queria um desses para o Jhony. Tudo bem bonito, arrumado. Imagino as paredes enfeitadas com muitos carrinhos. Um guarda-roupa com tudo organizado.; O armário realmente faz falta. As poucas peças de roupa de Jhony ficam sobre um caixote. Ontem, havia só um pacote e meio de fraldas.
Esperança
Apesar das dificuldades, os pais desejam um futuro completamente diferente do que o presente que vivem. ;Ele vai estudar, vai crescer na vida e ter orgulho da família;, afirmou Jhony. ;Ele tem que ser muito feliz;, completou Sara. O casal brincou sobre a profissão do ainda bebê. Simultaneamente, chegaram a uma conclusão: jogador de futebol. ;Ele vai ser bom de bola;, destacou o pai.
A avó paterna, a dona de casa Dalvina Maria dos Santos, 40 anos, que também mora no barraco, acompanhava tudo de perto. Em vários momentos, ela se emocionou. ;Aqui pode ser pobre, um lugar feio e uma família muito humilde, mas tem amor. É isso que nos sustenta e nos mantém juntos. Esse menino (aponta para Jhony Júnior) vai crescer, saber do que aconteceu, mas vai se lembrar também do amor que sempre recebeu. O amor vai nos levar em frente.;
PERFIL
;Meu sonho era ser modelo;
A voz singela, em tom quase infantil, revela a fragilidade de Sara Maria da Silva, 19 anos. A moça chegou à capital há quase um ano. Veio de um povoado próximo a Picos, no centro-sul do Piauí. Lá, morava com a avó, uma mulher de 60 anos. Pouco fala dos pais. Elas trabalhavam em uma casa de família, mas só uma delas recebia salário. ;Levantávamos de madrugada para varrer os terreiros da casa. Era muito difícil. Atrasava muito para chegar à escola. Isso sempre acontecia. Eu amava estudar. Gostava bastante de português e inglês. Pensava que isso poderia me ajudar na carreira de modelo. Queria fazer fotos para revista. Sonho de menina, sabe?;, conta.
O sonho de viver entre fotógrafos, trocas de roupas e passarelas ficou cada vez mais distante. A situação financeira era delicada. Estudou até o 4; ano do ensino fundamental porque precisava colaborar com a renda familiar. Veio para o DF trabalhar na casa de uma tia como babá, na Estrutural. Não deu certo. Lá, conheceu Jhony dos Santos, 20 anos. ;Gostei dele logo de cara;, comenta entre risos. A rotina é pautada pelos cuidados com o barraco onde vivem e o vizinho lixão. Hoje, são poucas as aspirações. ;Só queria que meu filho tivesse um quarto bonito, igual àqueles de televisão.;
;Eu queria salvar vidas;
O sorriso do jovem descalço que entrou no barraco em que vive não é só por ter o filho consigo novamente. No cotidiano, contam os amigos, o brasiliense Jhony dos Santos, 20 anos, é naturalmente alegre. Ele nasceu e se criou na Estrutural. Do lixão, tira o sustento da família. ;As pessoas têm muito preconceito. Acham que, só por a gente morar aqui ,nossa índole é ruim. O olhar de desprezo é que machuca mais;, desabafa o jovem, que estudou até o 1; ano do ensino médio.
Enquanto falava de si, arrumava uma gambiarra para levar água ao barraco. De pés descalços e com uma muda de roupas bastante usadas, ele começou a contar os sonhos que abandonou por causa da dura realidade. O pai era alcoólatra e a bebida impôs o fim do casamento dele. Sua mãe, a dona de casa Dalvina dos Santos, 40 anos, assumiu tudo. ;Ela criou os cinco filhos com muito esforço e honestidade. Da mesma forma que eu vou criar o meu. Preciso arrumar um emprego com carteira assinada. Eu queria ser bombeiro, salvar vidas, mas o meu caminho foi para outro rumo;, observa. Jhony emenda: ;Quero que meu filho tenha uma história diferente. Faremos o possível para ele ter uma vida boa;.
Como ajudar
; O Correio Braziliense está recebendo doações de fraldas, roupas, materiais de higiene pessoal infantil e cestas básicas para ajudar a família de Jhony. Ontem, chegaram as primeiras contribuições. ;Depois de um trauma desses, é preciso muita ajuda para seguir em frente. A família é muito humilde. O apoio vai fazer a diferença na vida deles;, disse uma leitora, que doou fraldas e roupas, mas pediu para não ser identificada.
; Parentes da ex-estudante de enfermagem Gesianna de Oliveira Alencar, 25 anos, a sequestradora de Jhony, pretendem doar para a família de Jhony todos os pertences e fraldas adquiridas nos meses em que a mulher fingiu estar grávida. ;Sabemos que eles precisam e ainda não há uma destinação para esses pertences;, ponderou a advogada de Gesianna, Leda Rodrigues Rincon.
; Quem quiser ajudar pode entregar os produtos, em horário comercial, até segunda-feira, na portaria do jornal (Setor de Indústrias Gráficas, Quadra 2, 340, Edifício Edilson Vilela). O material será enviado à família do bebê.