Isa Stacciarini
postado em 18/05/2017 06:00 / atualizado em 19/10/2020 12:13
Quando crianças e adolescentes são alvos de estupradores, sofrem a vítima e toda a família. Em um endereço do Gama, uma mãe chora há três dias. A filha, de 11 anos, foi violentada pelo ex-companheiro na madrugada de segunda-feira. Durante duas horas, o ex-padrasto da garota a submeteu ao ato sexual com requintes de covardia. “A todo momento que ele cometia esses abusos, ele falava a mesma coisa: ‘É para se vingar da sua mãe, que não me quis’. Ele conseguiu, porque não tenho mais vida. Ele me matou. Não sei mais o que vai ser de mim”, desabafou a mãe. O acusado foi preso na noite de terça-feira.
O depoimento da mulher foi dado na véspera do Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, que marca hoje a campanha de conscientização contra esse tipo de crime. As estatísticas confirmam a frequência dos ataques. De janeiro a abril deste ano, do total de 274 vítimas de estupro no Distrito Federal, 158 são crianças e adolescentes — isso corresponde a 58% dos casos e à média de mais de um ataque sexual por dia. No mesmo período do ano passado, 232 pessoas sofreram a violência. Dessas, 149 tinham até 17 anos, o equivalente a 64%.
Com a adolescente de 11 anos, moradora do Gama, o crime aconteceu dentro de casa. O ex-padrasto aproveitou que a mãe trabalhava, quebrou a janela da cozinha e invadiu a casa. Lá, estuprou a vítima e agrediu o irmão dela, de 2 anos. “No dia, eu pedi ao meu chefe para ser liberada mais cedo. Quando vi a janela quebrada, não tinha dúvidas de que fosse ele. Mas, depois, reparei que nada tida tinha sido levado, até que a minha filha falou (sobre o abuso)”, disse. “Eu quero muito a justiça de Deus e a dos homens. Ele não podia ter feito isso. Podia roubar a minha casa, fazer o que for, mas não podia mexer com a minha filha. Não sei o que vai ser de mim, se dou conta de trabalhar. Se ele queria me matar em vida, conseguiu”, lamentou.
Em Samambaia, uma adolescente, hoje com 17 anos, também sofreu um estupro aos 11. Os abusos aconteceram entre 2010 e 2011. O caso tramita em sigilo no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) desde 2014. Por causa de dificuldades financeiras da mãe, a menina morava na casa do agressor, amigo da família. A vítima ficava sob os cuidados dele e da mulher. A violência ocorria no momento em que a companheira saía de casa — o filho do casal tinha, à época, entre 1 e 2 anos.
A menina, no entanto, só contou sobre a violência à mãe em 2013. O estupro marcou a vida da vítima e da família. A adolescente frequenta psicólogo e quase não sai sozinha. “A gente não acredita em mais ninguém. Aqui em casa, tudo mudou. Perdi o serviço e não confio mais em deixar os meus filhos com ninguém. Eu me culpo, porque deveria ter prestado mais atenção, e ela também se culpa. É uma ferida para o resto da vida”, contou a mãe da menina, uma cuidadora social de 39 anos, que tem mais três filhos.
Escolas
Segundo o subsecretário de Gestão da Informação da Secretaria de Segurança Pública e da Paz Social, Marcelo Durante, pesquisa realizada semestralmente nas escolas públicas do DF revela que 45% dessas instituições identificam sinais de violência doméstica nos alunos. “Um ator que poderia ser central nesse processo da rede de proteção são as escolas, as famílias e o Conselho Tutelar. Por exemplo: o que as escolas fazem quando identificam um aluno nessa situação? Chamam o Conselho Tutelar? Vão até a casa dessas famílias? Porque o caso de estupro não é de um dia para o outro. O processo vai avançando até se chegar ao abuso”, explicou.
Crime sem castigo
Em 18 de maio de 1973, uma menina de 8 anos foi sequestrada, violentada e assassinada no Espírito Santo. A investigação do crime ficou conhecida como Caso Aracelli. O corpo da vítima apareceu seis dias depois carbonizado, e os agressores, jovens de classe média alta de Vitória, nunca foram punidos. A data ficou instituída como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes a partir da aprovação da Lei Federal nº 9.970/2000.
Atenção
Confira 10 maneiras de identificar possíveis sinais de abuso sexual, segundo a organização Childhood Brasil
Mudanças de comportamento
O primeiro sinal é uma possível mudança no padrão de comportamento da criança, como alterações de humor, entre retraimento e extroversão, agressividade repentina, vergonha excessiva, medo ou pânico
Proximidades excessivas
O abusador, muitas vezes, pessoas da família ou próximas à criança, manipula emocionalmente a vítima, que não percebe o crime; com isso, costuma ganhar a confiança, fazendo com que ela se cale
Comportamentos infantis repentinos
Se a criança ou o jovem voltar a ter comportamentos infantis, os quais abandonou anteriormente, é um indicativo de que algo está errado
Silêncio predominante
Para manter a vítima em silêncio, o abusador costuma fazer ameaças de violência física e mental, além de chantagens. É normal também que usem presentes, dinheiro ou outro tipo de material para construir uma boa relação com a vítima
Mudanças de hábito súbitas
Sono, falta de concentração, aparência descuidada, entre outros, são indicativos de que algo está errado
Comportamentos sexuais
Crianças que apresentam interesse por questões sexuais, fazendo brincadeiras de cunho sexual ou usando palavras ou desenhos, podem estar revelando o abuso
Traumatismos físicos
Marcas de agressão, doenças sexualmente transmissíveis e gravidez. Essas são as principais manifestações que podem ser usadas como provas à Justiça
Enfermidades psicossomáticas
Problemas de saúde, sem aparente causa clínica, como dor de cabeça, erupções na pele, vômitos e dificuldades digestivas, que na realidade têm fundo psicológico e emocional
Negligência
Muitas vezes, o abuso sexual vem acompanhado de outros tipos de maus-tratos que a vítima sofre em casa, como a negligência
Frequência escolar
Observar queda injustificada na frequência escolar ou baixo rendimento causado por dificuldade de concentração e aprendizagem. Outro ponto a estar atento é à pouca participação em atividades escolares e a tendência de isolamento social