;Durante muito tempo eu não soube o que era ser normal.; A frase da escritora Manoela Serra, 32 anos, resume parte do drama de uma vida inteira. Desde quando recebeu o diagnóstico de transtorno bipolar, em 2009, as crises diminuíram. Os remédios mantêm o equilíbrio das emoções e a construção de uma nova rotina. Por pelo menos uma década, porém, a moradora da Asa Sul recebeu tratamento inadequado, o que a deixava ainda mais instável. ;Eu vivia entre a euforia sem limites e a depressão profunda. Não entendia o que acontecia comigo;, conta. O destempero dos sentimentos deixou marcas que hoje são usadas para ajudar famílias e pacientes.
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Ao abrir a porta, a jovem cordial, de gestos delicados e fala mansa não aparenta ser capaz de ter rompantes de explosão. Os ataques prejudicaram os estudos e o trabalho. Aos 15 anos, ela se recorda da primeira crise. Afastou-se da escola por um ano. ;De jovem alegre e corajosa, eu passei para um bichinho acuado, que dependia das outras pessoas. Elas me levavam comida no quarto e me davam banho;, detalha. Nem sempre era assim. A agressividade, por vezes, tomava conta da cena. ;Eu dizia coisas horríveis para as pessoas. Gritava, colocava o dedo na cara e avançava. Depois, eu tinha lapsos de memória e não entendia as razões de fazer aquilo.;
Manoela transformou sua história em livro, O diário bipolar, e dá palestras sobre o tema. ;Eu escrevi o que gostaria de ter lido quando mais precisei. Nas livrarias, eu encontrava muito conteúdo que trata sobre a doença, mas nunca das pessoas que sofrem com ela;, ressalta. O texto ficou pronto em pouco menos de 10 dias. ;Conto episódios muito difíceis e tento explicar como o doente enxerga as coisas. Muitas mães falam que estão entendendo melhor seus filhos. Até os próprios doentes passam a se compreender com mais clareza;, argumenta. O diagnóstico dela ocorreu em 2009, aos 25 anos.
[SAIBAMAIS]Um dos objetivos de Manoela é combater a estigmatização da bipolaridade. ;Tornou-se um xingamento dizer que determinada pessoa é bipolar. A banalização da doença faz com que fique minimizada, o que prejudica aqueles que sofrem com ela. Isso atrapalha o diagnóstico e o tratamento. Não se escuta, por exemplo, dizer ;olha lá o diabético; ou ;eita, lá vem o hipertenso;, mas isso acontece com o bipolar. Essa marginalização afasta as pessoas do tratamento. Fica aquele asco de tomar remédio, frequentar psiquiatra e fazer terapia;, defende.
Lidar com o comportamento de um bipolar exige paciência, dedicação e tolerância. ;Houve um período em que eu não podia ficar sozinha. Pela manhã, uma ajudante doméstica ficava comigo, à tarde, meu pai a rendia e assumia os cuidados. É um desgaste muito grande para a família. Não é fácil agir e entender. O bipolar sente as emoções de uma maneira exagerada, engrandecida. Isso faz com que o relacionamento seja dificultado. Eu perdi amigos e namorados;, relata Manoela.
Os pensamentos suicidas e o isolamento social dificultam a rotina. ;A depressão e o suicídio andam de mãos dadas. Muitas vezes, eu pensei em acabar com a minha vida. Queria tomar toda a cartela de remédio ou me jogar pela janela. A confusão mental é tamanha, que eu pensava na família. Dizia: hoje eu não vou me matar porque minha mãe está feliz e não quero estragar o dia dela. O fato de não se falar em suicídio torna mais difícil o enfrentamento. Quantas vezes eu escutei: ;menina, não pensa nisso, não; ou ;deixa de besteira;;, completa.
Sob controle
Para manter o autocontrole, Manoela cumpre o cronograma de medicações ; ela toma remédios três vezes por dia ; e estuda sobre a doença. Na prateleira da sala, há vários títulos sobre autoestima, liderança e autoconhecimento. ;A informação tira a gente da escuridão. Hoje, eu entendo com clareza que não consigo ter uma rotina rígida, por exemplo, de trabalho. Tem dias que eu não vou conseguir chegar no horário;, explica. Manoela trabalhou por um período como professora de inglês.
Longe de ser um tratamento fácil, a bipolaridade requer atenção durante a assistência. A rede pública oferece poucos recursos (leia Para saber mais). Alguns medicamentos chegam a custar R$ 1,6 mil por mês. ;Mais que tomar a medicação na dose e na hora certa, o paciente precisa de ajuda com terapias. Encontrar o médico certo, a droga mais adequada e a terapia que traz melhor resultado leva tempo. O essencial é manter o tratamento para elevar a qualidade de vida;, pondera. Nesse momento, o toque do celular interrompe a entrevista. Era o horário de tomar a segunda dose de um dos estabilizadores de humor. ;Vou tomar daqui a pouco, mas não se preocupe, não vou ficar doida;, brinca.
O presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva, acredita que os médicos devem estar melhor preparados para o diagnóstico. Além disso, ele defende a desmistificação da doença. ;Temos muita gente que tem preconceito de ir a um psiquiatra. Preferem ir a um clínico, por exemplo. Isso prejudica e alonga o tempo para fechar o diagnóstico. Com essa atitude, só piora o quadro do paciente psiquiátrico. As pessoas perdem a possibilidade de se tratar, e a doença vai se cronificando. As crises ficam mais sérias;, destaca. Para o especialista, só a informação pode reverter esse cenário. ;Mudou muita coisa nos últimos cinco anos, mas ainda há o que se fazer. Não vemos campanhas de prevenção à saúde mental;, argumenta.
A doença
Os primeiros sintomas da bipolaridade aparecem, em geral, entre 18 e 35 anos. Há duas classificações da doença: tipo 1 e tipo 2. O primeiro é mais grave, com episódios que incluem psicose, quebra de realidade, quadros de paranoia e alucinações. No segundo, o quadro é mais leve. As euforias não são tão proeminentes e predominam episódios depressivos, que se alternam em menor número e intensidade. As mudanças de humor podem ser bruscas, mas a duração de cada episódio, chamado pelos médicos de ciclos, não. A depressão, geralmente, é igual ou superior a 15 dias, enquanto a euforia dura, pelo menos, uma semana.
Para saber mais
SUS oferece o básico
O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece atendimento para quem sofre de Transtorno Afetivo Bipolar (TAB). Os pacientes, que já contam com atendimento gratuito de psiquiatras e psicólogos, também têm uma linha completa de tratamento para a doença. Em 2015, o Ministério da Saúde incorporou os medicamentos Clozapina, Lamotrigina, Olanzapina, Quetiapina e Risperidona ao tratamento. Além disso, a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) monitora os pacientes e orienta as famílias. O Ministério da Saúde também elaborou o primeiro Protocolo Clínico de Diretrizes Terapêuticas (PCDT). O material tem como objetivo orientar os médicos sobre o uso dos novos medicamentos e em quais casos eles são mais afetivos.