Segredos guardados no Palácio Itamaraty por 50 anos começam a ser revelados por pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB). De agosto a fevereiro, alunos e professores do Instituto de Artes exploraram as salas, os salões, os auditórios, os corredores e os gabinetes do edifício-sede do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e dos dois anexos. Eles reviraram móveis, tapetes, pinturas, esculturas e gravuras. O trabalho resultará no mais completo inventário daquela que é considerada a obra-prima de Oscar Niemeyer.
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O Correio teve acesso ao resultado parcial da pesquisa. A equipe da UnB cadastrou 580 obras de arte no Itamaraty. Apenas de gravuras, há 450. Muitas formam coleções completas de autores nacionais. Pinturas, colagens e desenhos chegam a 92. Estão fora da contagem as peças de mobiliário. Mas só de cadeiras Bahia e Arcos, dois ícones do design brasileiro, há mais de 90. Ambos foram concebidos pelo então jovem arquiteto carioca Bernardo Figueiredo (1934-2012).
Especialistas em arquitetura, design e artes plásticas garimparam, principalmente, as obras expostas em gabinetes de embaixadores e assessores. A maioria, comprada com dinheiro público, mas nunca exibida à população. Expor esse acervo, por meio de livros e mostras gratuitas, é outra finalidade da iniciativa. Os professores envolvidos no projeto organizam, com diplomatas, eventos para marcar o cinquentenário do Itamaraty ao longo de 2017. O palácio é considerado o prédio mais rico artisticamente e bem conservado da Esplanada dos Ministérios.
Em outra frente de trabalho em função dos 50 anos, o Instituto Federal de Brasília (IFB) entrega ao Itamaraty, amanhã, peças do designer e arquiteto Sérgio Rodrigues (1927-2014) restauradas. Esse é o piloto de um programa de restauração de obras do palácio (leia Para saber mais) iniciado em fevereiro. Conhecido por usar madeiras nativas em suas criações, Rodrigues ajudou a mudar a linguagem dos móveis e tornou o design brasileiro conhecido mundialmente. E o MRE concentra o maior número de obras dele.
Reis e rainhas
Ainda sem o famoso espelho d;água e acabamentos internos, mas mobiliado e com obras de artes, o Palácio dos Arcos abriu as portas para a sua primeira recepção oficial em 14 de março de 1967, último dia do governo militar de Castelo Branco. O evento contou com a presença dele, de altas autoridades brasileiras e de quase todo o corpo diplomático. Na cerimônia, em seu último ato como presidente do Brasil, Castelo Branco assinou o decreto que deu ao palácio o nome consagrado internacionalmente à chancelaria brasileira: Palácio Itamaraty. No dia seguinte, o prédio ficou aberto à visitação pública.
O gabinete do ministro das Relações Exteriores foi definitivamente transferido do espaço que ocupava no Ministério da Marinha para o Itamaraty, em abril de 1967. No mês seguinte, o palácio recebeu a visita dos príncipes herdeiros do Japão e, em outubro, do então chanceler da República Federal da Alemanha, Willy Brandt. Em 1968, a Rainha Elizabeth II, da Inglaterra. Então com 42 anos e 16 de reinado, ela e seu consorte Philip, Duque de Edimburgo, empreenderam uma viagem à América do Sul para fomentar a integração econômica do Reino Unido com os países da América Latina. Tendo aportado em Recife, em novembro, o casal visitaria, em 11 dias, Salvador, Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro.
A visita da rainha a Brasília começou em 5 de novembro de 1968 e a sua recepção, no Itamaraty, foi considerada uma das mais chiques da capital. ;Os homens usavam casacas que arrastavam nos tapetes;, conta o fotógrafo Gervásio Batista, 96 anos. Ele cobriu a visita da realeza ao Brasil pela extinta Revista Manchete. O evento reuniu 3 mil pessoas. A formalidade da ocasião exigiu que a monarca perdesse horas em sessões de fotos e beija-mão. Mas, para alguns, mais memorável foi a gafe do presidente Costa e Silva. No momento do brinde, ao erguer a taça, o general se embolou ao pronunciar a saudação ;God Save The Queen; (Deus Salve a Rainha), pronunciando algo como ;God; God. O ;save the queen; só saiu após um assessor soprar a frase no ouvido do presidente.
A maioria dos convidados estava ávida para ver os representantes da corte britânica de perto e as obras escolhidas pelo embaixador Vladimir Murtinho para decorar o palácio brasiliense. Naquele ano, a ala oeste do Salão de Recepções exibia, em numa das paredes, dois anjos de 1737, que pertenciam à Igreja de São Pedro dos Clérigos, demolida para a abertura da Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. Da Bahia, veio uma Santa Bárbara do fim do século 17. Em uma área que abria as portas pela primeira vez, no lado leste do Salão de Recepções, de frente para o anexo da Câmara dos Deputados, a parede exibia um grande quadro de Djanira. Essas peças hoje podem ser admiradas em visita guiada pelo Itamaraty.
Moderno e antigo
No fim de 1969, com a sede toda construída e mobiliada, o MRE se tornou o primeiro ministério a mudar-se, em sua totalidade, do Rio de Janeiro para Brasília. Em 21 de abril de 1970, uma solenidade marcou a inauguração oficial do Itamaraty. A decoração do prédio continua quase a mesma dos anos 1970. A combinação entre arquitetura, arte e mobiliário modernos e peças antigas são uma das características mais marcantes do palácio. ;Ele é um grande laboratório para qualquer pesquisador das artes. Só no mobiliário, tem peças coloniais, neoclássicas, barrocas, do início da indústria moveleira brasileira até ícones dos anos 1980;, ressalta a professora Grace de Freitas, do Instituto de Artes.
Ela integra a equipe que realiza o inventário no Itamaraty. Para Grace, alguns dos maiores achados são as centenas de gravuras de autores nacionais, além dos tapetes da marroquina Madeleine Colaço (1907-2001). Encomendadas para as salas de almoço do palácio e para os departamentos, que ocupavam o segundo andar do Bloco Administrativo, pelo menos 10 dessas peças estão penduradas nas paredes como tapeçarias, o que permitiu a preservação.
Outra à frente do inventário, a professora de design Ana Cláudia Maynardes destaca a grande quantidade de peças assinadas por Sérgio Rodrigues, em bom estado de conservação, usadas pelos servidores do Itamaraty. ;Para se ter uma ideia da importância dele (Rodrigues), sua Poltrona Mole (ou Sheriff, como é conhecida no exterior) é considerada um ícone do design de móveis do século 20 e integra o acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York;, observa.
Nos reservados gabinetes do Itamaraty, o mobiliário de Sérgio Rodrigues e de Bernardo Figueiredo combinam com tapetes persas comprados em Beirute e Londres. Móveis, quadros e tapeçarias históricos, trazidos do Palácio Itamaraty do Rio de Janeiro, completam a decoração. Há, ainda, os jardins do paisagista Roberto Burle Marx (1909-1994) nas áreas externas e internas, do térreo ao terraço do terceiro andar. Tudo pode ser apreciado pelos visitantes.
Materiais nacionais
Formado em arquitetura pela Faculdade Nacional de Arquitetura, no Rio de Janeiro, Bernardo Figueiredo colaborou com a empresa OCA, de Sérgio Rodrigues, de quem recebeu forte influência. Também conviveu com Joaquim Tenreiro, um dos pioneiros no design mobiliário do país. Desde 1962, Bernardo Figueiredo desenvolvia o que chamava de Desenho Brasileiro: um mobiliário que valorizava materiais e técnicas nacionais, como o couro, a palhinha e o jacarandá. Ideias em perfeita sintonia com o projeto do Palácio Itamaraty.
Originalidade premiada
O designer sempre se preocupou em desenvolver um mobiliário moderno e autenticamente brasileiro. A originalidade da estrutura de toras de jacarandá maciço e percintas de couro e dos almofadões que se moldavam confortavelmente ao corpo, distantes das linhas retas e das estruturas de aço então em voga, levaram o júri do Concurso Internacional do Móvel, em 1961, em Cant;, na Itália, a conferir à Poltrona Mole o primeiro prêmio.
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