Jornal Correio Braziliense

Cidades

Descendentes reproduzem histórias fantasiosas sobre o polonês da Chapada

Na segunda reportagem que conta a saga de Antoni Dolenga Czerwinski, integrante das forças de Napoleão Bonaparte que viveu no interior de Goiás, os descendentes reproduzem histórias fantasiosas sobre o patriarca

[VIDEO1]
Batalhas homéricas. Travessia de um oceano a nado. Captura por índios canibais e a vida salva por um padre. No imaginário dos descendentes, o polonês que há dois séculos começou a povoar parte da Chapada dos Veadeiros é um ser mítico. As histórias narradas por esses moradores de cidades do Entorno do Distrito Federal são ainda mais fantásticas do que as comprovadas cientificamente por um pesquisador da Universidade de Brasília (UnB).

Como mostrou o Correio na edição de ontem, proveniente da região de Krosno, Antoni Dolenga Czerwinski integrou as forças de Napoleão Bonaparte quando a Polônia estava sob o jugo do império russo. Fugindo da guerra, ele migrou para o Brasil por volta de 1814, formou família e integrou a Guarda Imperial de D. Pedro II. No fim da primeira metade do século 19, recebeu uma carta de sesmaria para cultivar terras do sertão de Goiás, onde se fixou.

Leia mais notícias em Cidades


Hoje, o Correio conta as lendas alimentadas por moradores dos municípios goianos de Água Fria, São João D;Aliança e Alto Paraíso, vizinhos do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Histórias passadas de forma oral, de pais para filhos. Uma gente que, em sua maioria, sempre viveu na área rural, como lavrador, sobrevivendo do que cultiva em chácaras, frações do que um dia foi a Polônia, fazenda fundada por Antoni Dolenga Czerwinski.




[SAIBAMAIS]Grande parte dos descendentes o conhece só como Polonês, um homem que participou de uma intensa batalha em que os compatriotas foram dizimados. Para sobreviver, ele matou um animal (cavalo ou burro, dependendo do contador da história), extraiu suas entranhas e escondeu-se em sua barriga, permanecendo no estômago até o fim da batalha, para não perecer. Em seguida, o Polonês e um compatriota fugiram correndo desesperadamente em direção ao mar com a intenção de entrar clandestinamente em algum dos navios ali aportados. Desertores e perseguidos viram-se numa luta intensa de espadas contra outros soldados. A espada do compatriota partiu-se ao meio e, como o Polonês era ;melhor; espadachim, ele pediu, bradando ao companheiro, o pedaço que lhe restou, lançando sua espada por entre as pernas e recebendo da mesma forma a outra parte, em um lance rápido de incrível habilidade com a técnica de espadas, sem hesitação e sem falhas.

Após esse episódio, segundo os descendentes, o Polonês atravessou um braço do mar a nado. ;Contaram que ele nadou até alcançar uma ilha. Da ilha, ele conseguiu uma embarcação, um navio, para chegar ao Brasil;, conta João Luís da Silva, 64 anos, lavrador, nascido e criado em terras da Fazenda Polônia, tataraneto do Polonês. ;Temos que ressaltar que essas (os descendentes) são pessoas do ambiente rural. À exceção de uma delas, nunca foram ao litoral e, de toda maneira, desconhecem o tamanho real do mar, ou mesmo não associam sua largura como um espaço impossível de atravessar de uma margem a outra a nado;, observa o professor Jucelino Sales, autor da dissertação sobre o polonês da Chapada, apresentada na UnB.

Sales esclarece ainda que o Polonês se encontrava de fato em uma guerra que envolvia a Polônia, sob o domínio do Império Russo. Ele lutava como soldado do exército napoleônico. ;Tais acontecimentos remetem ao período de revoluções que assolaram a Europa na primeira metade do século 19, entre a queda de Napoleão e as guerras revolucionárias de 1830;, afirma. No entanto, nunca se soube como o Polonês veio para o Brasil.

Refém de índios

O mais provável é que o Polonês tenha aportado na Bahia, pois era o destino comum dos navios vindos da Europa à época. Mas seus parentes moradores da Chapada têm uma imaginação fértil. Contam que, rumo a Minas Gerais, uma tribo indígena antropofágica o capturou. E só não o comeram graças à intervenção de um padre, ou, em outra versão, devido ao artifício da queima de aguardente.

Tataraneto do Polonês, João Luís da Silva, 64 anos, relatou difusamente o episódio. Segundo ele, o tataravô ;conseguiu domar os índios, que passaram a ser amigo dele;. Já para Marcelina Alcides Szervinsk, 83 anos, moradora de São João D;Aliança (GO), trisneta do Polonês, um índio queria pegá-lo. ;Queria acabar com ele. Mas chegou um senhor de sabedoria. E ele adulou o índio e o adulou também.; A narradora ressaltou a presença de outro indivíduo que apareceu em auxílio do Polonês. Talvez o tal padre.

Realmente, o Polonês chegou a Minas. Ele se casou com Umbelina Adelaide Silvânia Szervinsk, em Piumhi, cidade natal dela. ;Em algum ponto da história, logo depois que foi oficial da Guarda do imperador Pedro II, recebeu uma carta de sesmaria com a qual desbravou terras da Província de Goyaz. De seu matrimônio, gerou 12 filhos, dos quais apenas dois remanesceram, marcados com traços mais fortes na descendência familiar que permaneceu no sertão goiano: os xarás dos famosos heróis literários, personagens da mitologia grega que deram origem à ilíada, Heitor e Aquiles;, detalha Jucelino Sales.

Nessa parte do enredo, diz o professor, ;a história real funde-se com a ficção e certa névoa mítica e literária envolve a história pessoal desses dois irmãos;. Os personagens homéricos Heitor e Aquiles eram inimigos na lendária Guerra de Troia e esses irmãos históricos também se inimizam em vida, por uma desavença que já ultrapassa mais de século e meio, conjugando sua permanência na memória coletiva de seus descendentes.

O despertar da ira

Uma das versões sugere que a inimizade derivou de conflitos relacionados a questões de terra: uma roça derrubada e cultivada por um dos filhos de Aquiles que morreu após ser picado por uma cobra. Segundo esse relato, a doença foi provocada pelas más intenções de Heitor, que se apossou dessa roça, e Aquiles o culpou pela morte do filho, despertando, assim, a sua ira, ao ponto de os irmãos nunca mais se falarem.

;Meu bisavô Aquiles tinha um filho, José. Estrepou-se em um espinho de cobra, quando estava fazendo uma roça. Contou ele que estava fazendo a roça; e um povo estava derrubando a roça que ele estava fazendo. Ele se zangou, morreu. E meu bisavô Aquiles mandou falar para o Heitor que tinha para ele uma bala na espingarda. Daí, passaram-se muitos anos, eles se toparam. Meu bisavô Aquiles era mais bobo. Perguntou ele: ;Quem é você?; ;Sou seu irmão Heitor;. Falou: ;Com você eu não quero graça;. Estava com a espingarda, e não atirou. E o Heitor saiu correndo, largou o cavalo com a sela e tiniu, tocou numa grota de medo (risos);, conta Graciana Alcides Szervinsk, trineta do Polonês.

Maria da Cruz Damasceno descreve quase a mesma versão. Mas, segundo ela, não foi o filho de Aquiles o prejudicado, mas outro irmão de ambos os inimizados: ;Aquiles tinha raiva de Heitor de morte. E Heitor também de Aquiles. Aquiles já era casado. Heitor, ainda não. Aquiles já era casado e fez uma roça de toco para ele tratar da família dele. E ele roçou a roça todinha, o mato todinho. E Heitor mandou derrubar a roça e plantou a roça para ele. Eu acho que o irmão dele foi ofendido (picado) de cobra. Quando Aquiles foi cuidar desse irmão, o outro aproveitou esse fato para derrubar a roça dele e plantar para ele, enquanto ele estava cuidando do irmão doente. Que eu não sei o nome do irmão. Aí, eles ficaram com raiva de morte um do outro. Daí para cá, não se falaram mais;.

Saga em livro

A história da travessia do Polonês foi registrada no livro Vozes do cerrado, do poeta Kiko di Faria, pentaneto do Polonês. Para construir a epopeia, ele ouviu outros descendentes do personagem histórico.

Confira trecho da obra:
Partiram em grande silêncio
E em silêncio chegaram
Dormiram o resto da noite
E cedo se levantaram
Então perguntou o padre
De onde vens qual teu nome?
O jovem sorriu e disse
Sou o mais grato dos homens!

Meu nome é Antonio
Sou europeu da Polônia
Venho buscando a vida
Pra não morrer na vergonha
Foi em solo polonês
Que nasci e me criei
Ando levado por Cristo
Onde parar eu não sei

Vim fugindo de meu rei
Que queria me matar
Porque eu me recusei
Sangue inocente derramar
De mocinho a vilão
Foi fácil me transformar
Bastou aos seus exageros
Uma só vez contestar