Jornal Correio Braziliense

Cidades

Documentário sobre Sol Nascente mostra que a cidade 'é feita de gente'

Pessoas que trabalham e constroem uma história de vida e devem ser vistas sem preconceito

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O setor Sol Nascente, em Ceilândia ; considerado a maior favela da América Latina, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ;, é constantemente pautado por temas negativos, como a falta de infraestrutura e a violência. A rotina da comunidade, porém, não é só isso. Ali, tem gente de bem, trabalhadores, mães e pais de famílias, jovem a fim de fazer a diferença. Ninguém melhor do que os próprios moradores para falar sobre o lado positivo do Sol Nascente. Com a ideia na cabeça e uma câmera na mão, um grupo de aproximadamente 10 pessoas produziu o documentário O Sol nasceu para todos. O filme narra a história de vida dos habitantes e os inúmeros fatos bons no local.

O setor é dividido em três trechos, onde moram mais de 70 mil pessoas. Nas filmagens, a mensagem a ser passada é de um Sol Nascente com muitas dificuldades, mas também com gente feliz. O significado do título surgiu a partir da reflexão de que, apesar de a população reconhecer que vive em um país desigual, muitas pessoas não esperam iniciativa de alguém ou do Estado: elas mesmas constroem a história e fazem de cada dia o melhor.

A ideia de gravar na região com uma perspectiva otimista era um sonho antigo do jornalista Davidson Pereira, 31 anos. Morador de Ceilândia, ele participa de projetos sociais na periferia desde 2010, na Rede Urbana Socioculturais (Ruas) e também atua no Programa Jovens de Expressão, na mesma cidade. As duas entidades mantêm parceria com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc). Em 2014, ano da Copa do Mundo no Brasil, a seleção da Suíça e a embaixada do país queriam ajudar boas iniciativas pelas cidades onde o time passaria durante o evento esportivo.

;Como eles jogariam em Brasília, entraram em contato com o Unodc e pediram o telefone de algum projeto que atuasse em Ceilândia e no Sol Nascente. Como nós já éramos parceiros, o escritório nos indicou. Eles simplesmente queriam deixar uma quantia de R$ 40 mil, mas não explicaram para quê. Apenas pediram que o projeto que queríamos desenvolver lá fosse apresentado de forma simples;, conta Davidson.

Era a oportunidade que faltava para a produção do documentário. Como eles já haviam ministrado diversas oficinas de fotografia e audiovisual na comunidade, decidiram chamar os alunos que passaram pela formação. ;Começamos a fazer o planejamento em cima do que a embaixada nos proporcionou. Contávamos com os equipamentos básicos para um projeto como esse, só que nunca tínhamos feito algo parecido. Realizamos alguns curtas de ficção até de forma bem amadora;, relata Davidson. O jornalista exerceu o papel de produtor e arquitetou todo o projeto, dividido em três etapas e com início na parte de pesquisa.

Processo

Na segunda etapa, uma equipe formada por mais duas jornalistas e um psicólogo percorreu as ruas do Sol Nascente em busca de histórias que mudassem a realidade do local, durante três meses. Depois, mais seis meses de gravações com outra equipe. Os documentaristas pegavam um dia tranquilo do personagem para poder conversar, seguido por um dia cheio, em que acompanhavam toda a rotina. Tudo dirigido pelo parceiro Alan Mano K. Por último, veio a fase da edição, que terminou em março. Todo o processo durou um ano e meio. ;Nós conversamos com mais de 100 pessoas, conseguimos fazer uma peneira e gravamos com quase 40. No vídeo, temos quase 23 que falam coisas diferentes;, detalha Davidson.

Histórias como a de André Gomes. Seus 30 anos de vida se mesclam com a luta por uma casa própria. O dom de fazer música o transformou no rapper Dialeto Certo ; que, aliás, ajudou a compor a trilha sonora do documentário. A carreira também tinha o objetivo de conseguir ter um teto, sem depender de aluguel. A construção da casa do músico é o enredo. Dialeto conta que sempre foi pobre, mas a mudança para o Sol Nascente deu a ele a possibilidade de construir a residência. Enquanto o filme rodava, André Gomes fez a planta e subiu as paredes. A maioria das vezes, sozinho. Às vezes, com a ajuda da mulher. Quando o serviço ficava mais pesado, contava com os amigos. A cada tijolo colocado, a cada encanamento encaixado, um diálogo de cansaço e de esperança. ;Estou trabalhando sozinho aqui. A mão de obra está cara e o dinheiro, pouco. Aí, devagarinho, eu vou mexendo aqui e ali;, diz, em uma das cenas.

O documentário terminou, mas a casa ainda não. ;Agora, deu uma travada, mas uma hora a gente chega lá. Pior já esteve;, aponta Dialeto Certo, casado e pai de duas meninas, e que já mudou para lá. Ele acredita que o filme mostrará que a região também não vive da marginalidade. ;Não é porque é um lugar humilde, que só tem coisa ruim. É um local com muita coisa positiva. Aqui tem pessoas simples, que só querem o melhor para a vida e a família. O lugar onde muitas pessoas saem do aluguel e arranjam um lugar para viver, voltar para casa e dormir tranquilo.;

Oportunidade

Nascida e criada no Sol Nascente, a jornalista Karla Alves, 31, participou do processo de pesquisa e também como personagem. Ela encarou a oportunidade como um reencontro com a própria história. ;Eu vi pessoas com quem tive contato na infância. Eu faço parte dessa história e me identifiquei ainda mais com a realidade daqui;, lembra. Karla sente orgulho de mostrar a cidade em que sempre viveu de uma maneira positiva por meio da própria realidade. ;O problema é que as pessoas já olham para cá negativamente, mas vamos conhecer as questões sociais. Temos vários projetos sociais de gente que não ganha nada com isso; que possui talento e que, de graça, ajuda e distribui para que a comunidade tenha acesso à cultura e à educação;, exalta. Para ela, a esperança vive na região, pois todos os aspectos negativos fazem parte da luta para melhorar o dia a dia.

O lançamento do documentário ocorreu na quinta-feira da semana passada, no Teatro Newton Rossi, do Sesc Ceilândia, e teve casa cheia. A produção fretou um ônibus para todos que participaram das filmagens pudessem prestigiar. ;Esse é um ponto importante do filme: mostrar para o morador uma cidade que ele talvez desconheça. Não tem espaço cultural, mas tem gente fazendo sarau. Com esse trabalho bem difícil e de muita entrega, a gente conseguiu mostrar um lugar diferente do que os habitantes conhecem. A melhor surpresa foi essa: a quantidade de histórias bacanas que existem aqui;, comemora Davidson Pereira.