Jornal Correio Braziliense

Cidades

Músico que vive nas ruas de Brasília retoma carreira com ajuda de amigos

Aos 13 anos, Manoel comprou seu primeiro violão e aprendeu a tocar sozinho


Já passava das 21h de 13 de novembro de 2015 quando a moradora da Asa Sul Pethy Mattos, 53 anos, se preparava para sair de casa. Conferiu a bagagem, estava tudo pronto: pães, mortadela, suco e refrigerante, alimentos que ela e o filho Gabriel, 13, distribuiriam a moradores de rua do bairro. Aquela tinha tudo para ser apenas mais uma típica noite de sexta-feira para a pequena família, que tem hábito de fazer o trabalho voluntário com desabrigados.

Na altura da 502 Sul ; local onde, de costume, encontravam moradores de rua ; ,viram um deles andando na calçada. Pethy se aproximou do rapaz, negro, pequeno e franzino, e ofereceu comida. Ele aceitou prontamente. Gabriel já estava com o violão em mãos e, como de costume, se ofereceu para tocar uma música para acompanhar a refeição. ;Ele disse: ;É, legal, mas você pode me emprestar o violão? Segura aqui meu pão e meu suco;;, lembra Pethy, que achou curiosa a reação do homem. ;Quando começou a tocar, ficamos embasbacados, vimos que ele tinha um repertório diversificado, um talento incrível.; Ela registrou as habilidades musicais do desconhecido em um vídeo, postado na internet dias depois.

A descrição da postagem, intitulada Amor nas ruas ; Encontro com Manoel Digital, era um pedido de ajuda para o morador de rua. Ele disse que, se tivesse um violão para tocar em lugares públicos, poderia conseguir dinheiro e um lugar para viver. Ela disponibilizou o próprio endereço de e-mail, na esperança de que alguém se dispusesse a ajudar. Dias depois, quando verificou as mensagens, Pethy foi surpreendida com mais de 50 pessoas que entraram em contato. ;Não eram apenas pessoas dispostas a ajudar. Eram moradores de Gurupi, no Tocantins, que se diziam muito tristes porque aquele era um grande músico da cidade, que fazia todos os grandes shows de lá. Eles queriam desesperadamente ajudar, porque tinham histórias com o Manoel. Um monte de gente falava que virou músico só por causa dele;, relata.

Manito dos Teclados
Manoel Matos, 53 anos, conhecido também como Manito dos Teclados no Tocantins. Atualmente, ele vive da venda de latinhas que cata em toda a zona central da cidade. O que ele chama de casa é, na verdade, um vão na estrutura de um viaduto localizado entre o Congresso Nacional e o Setor de Clubes Sul, onde dorme desde abril de 2013, quando chegou a Brasília.

Manoel só se tornou morador de rua depois que veio à capital. Antes, viveu da música no Nordeste e no Centro-Oeste. Nascido em 1963, em Palmeiras do Piauí, morava em uma casa de dois quartos com a mãe, dona de casa; o pai, um professor; e nove irmãos. Desde criança, trabalhava na colheita de uma roça da cidade. ;Eu morava em uma casa de taipa e recebia R$ 50 por mês. Quando tinha 13 anos, comprei meu primeiro violão e aprendi a tocar sozinho.;

Aos 14 anos, era estrela nas festas da cidade e conta que foi notado pelo vocalista de uma banda, que o chamou para tocar em Floriano, também no Piauí. ;Comecei a tocar bem e as pessoas percebem isso. Fui sem pensar duas vezes, para tentar ganhar dinheiro. Fiquei lá por três anos, até que comecei a melhorar, evoluir e apareceu outra banda que se interessou por mim e me levou para Guadalupe;. Manito ficou quatro anos e meio no município piauiense.

Mudou-se para São João dos Patos, no Maranhão. Lá, deu aulas de música em uma escola improvisada por um amigo no salão paroquial da cidade. ;Eu aprendia mais que ensinava, porque tinha que entender a matéria das apostilas para ensinar. Foi por causa desse tempo que hoje sei o que é uma sequência harmônica, por exemplo. O meu lucro maior foi em conhecimento;, afirma. Em 1986, quando o pai morreu, resolveu mudar de ares. Neste ano, Manoel veio a Brasília pela primeira vez. Tocava teclado em festas e em um bar na 512 Sul até 1988, quando se mudou para Goiânia.

Depois de um ano vivendo na capital goiana, foi viver em Gurupi, no Tocantins, após receber convite de um colega, também músico. ;Ele era um sanfoneiro, um verdadeiro artista do acordeão. Quando a gente se conheceu, ele me adorou, virou meu maior fã e me chamou para tocarmos juntos lá em Gurupi, onde ele já tinha contatos.; Como de costume, não hesitou em aceitar a proposta.

No Tocantins, se tornou Manito dos Teclados. ;Lá, tocava em festas, em clubes grandes, fazia R$ 500 por noite. Juntei dinheiro, comprei um lote, um carro antigo e vivi com uma mulher entre 1992 e 2004;.

Foi em Palmas, capital do estado, que o músico ficou até 2013, quando resolveu voltar a Brasília para fazer a carreira decolar. Foi nessa época também que a mãe de Manoel morreu. ;Vim tentar gravar aqui, porque isso é uma referência no Brasil inteiro. Os outros músicos te olham diferente.; Um dos irmãos, que vive em Águas Lindas (GO), buscou Manito em Gurupi.

Nas três semanas que ficou em Goiás, Manoel brigou com o irmão e foi roubado. ;Levaram tudo. Meu teclado, minha fonte, minhas roupas. Vim a pé para Brasília com essa mesma roupa que estou. Sou um cabra corajoso;, brinca. Sem instrumentos, dinheiro, roupas ou lugar para viver, Manito logo se instalou no viaduto e passou a viver da venda das latinhas que cata.

Inspiração

A memória de Evandro Carlos Ribeiro, 38 anos, o leva de volta a 1989, quando tinha 12 anos. Ele e o irmão, três anos mais novo, João Lucas, frequentavam as festas do clube que pertencia ao tio dos garotos e era o local onde Manoel costumava tocar. Os meninos ficavam ansiosos pelos fins de semana, quando poderiam encontrar e admirar, aos pés do palco, o músico que tocava quatro teclados ao mesmo tempo.

;Ele não dava muita bola pra gente nem sabia que tinha esses admiradores secretos, essas crianças que ficavam boquiabertas aos pés dele. Meu irmão só aprendeu a tocar teclado por causa do Manito e é isso que ele tem de especial. Ele inspira as pessoas;, conta Evandro, 38 anos. ;A situação em que ele se encontra me assustou, fiquei muito triste. A gente aqui de Gurupi é um povo muito simples, ficamos muito sensibilizados em ver que alguém tão conhecido e querido está nesse estado;, lamenta. O caçula João Lucas é hoje um dos membros da dupla sertaneja João Lucas e Marcelo, dupla que ficou conhecida pelo hit Eu quero tchu, eu quero tcha.

Manoel representa o caminho pelo qual a música entrou, também, na vida de Fernando Ferreira, 23, morador de São Sebastião. Ele dá aulas de música em uma escola particular e trabalha como saxofonista em bandas da cidade. Fernando recorda, entre risadas, mas com muita gratidão, que Manoel foi quem proporcionou a primeira oportunidade de ;passar vergonha; em cima de um palco, em 2008.

Tocar para um público, mesmo que pequeno, era o sonho do garoto, que tinha 15 anos quando surgiu a chance inédita de mostrar as habilidades que não tinha em uma festa de Nossa Senhora Aparecida. ;O Manito foi a primeira pessoa que me deu oportunidade de subir no palco, mesmo sem saber absolutamente nada. Ele me olhou e falou ;você vai ser músico; e me deixou tocar saxofone com ele. Foi um desastre, toquei muito mal e passei vergonha, mas, toda vez que a gente se encontrava em festas da cidade, ele me chamava de novo. Com o tempo, fui melhorando;, conta.

Fernando tinha, desde os 7 anos, o sonho de tocar e ter a música como profissão. ;Se pudesse me encontrar com Manito, agradeceria pelo sonho que ele colocou em mim, porque é com isso que vivo e cuido da minha família. Se não fosse pelo Manoel, talvez eu ainda estivesse no Tocantins, trabalhando em um posto de gasolina;.

Após receber as mensagens, Pethy reuniu voluntários e amigos em um grupo em aplicativo de mensagens instantâneas, além dos tocantinenses que se manifestaram por e-mail. Ela pediu ajuda para comprar um violão para Manito. ;Ele não aceita dinheiro nem comida nem o celular que demos para ele se comunicar, mas disse que, se tivesse um violão, não ia mais viver na rua;, conta Pethy. Uma das colegas, que prefere não se identificar, doou o instrumento.

O tecladista disse que está muito feliz com a oportunidade de recomeço e estuda a possibilidade de se reconciliar com o irmão, em Águas Lindas. Ele quer viver na cidade por um período, tomar banho, fazer a barba, conseguir roupas novas e ficar apresentável para shows. ;Moro na rua, mas não me sinto como os outros que também vivem assim. Eles se entregam àquela condição, mas eu quero e vou sair dessa. É só uma situação temporária, um obstáculo;, garante.

Durante o tempo em que conversou com a reportagem, os agradecimentos não paravam. ;Vou ficar devendo essa a Pethy, que é uma pessoa maravilhosa. Esse violão aqui é ótimo, uma obra de arte. Com ele, vou juntar dinheiro para comprar um teclado, que é o que realmente sei e gosto de tocar, mas vou ter paciência.; Ele também explica, em tom de brincadeira, que vai adotar um novo nome artístico: Manoel Digital. ;Não estudei direito, mal sei escrever meu nome. Como eu vou assinar? Com a digital, daí veio o apelido;, diz, entre risadas.

Para ajudar

Manoel aceita convites para shows. Contato 8503-1044.

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