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Lúcio Costa volta a Brasília: "É muito diferente do que eu tinha imaginado"

Foram necessários mais dez anos, desde a vinda em 1974, para que o inventor voltasse à invenção. A década de 1980 foi de intensa aproximação do arquiteto com a cidade. Passeou com amigos, foi sozinho à Rodoviária, esteve em um bar e visitou Mário Fontenelle

postado em 26/12/2014 06:00
A Asa Sul em 1984, a partir da W-3. Ao fundo, as superquadras com o renque de árvores previsto no projetoDez anos separaram a vinda de Lucio Costa a Brasília desde o histórico seminário no Senado, em 1974. O país ainda vivia sob as amarras da ditadura, o que não impediu o arquiteto de fruir da mais surpreendente de suas onze vindas à cidade. O arquiteto percorreu três dimensões numa só visita: o passado, o presente e o futuro da capital. A partir da vinda em novembro de 1984, Lucio Costa iria intervir de modo mais decisivo nos destinos da cidade, desde a vitória no concurso do Plano Piloto em 1957. Foi uma semana de descobertas e reencontros, de ordem profissional e pessoal.

Como das outras vezes, Lucio Costa não veio de livre e espontânea vontade. Precisou ser longamente cortejado por uma dupla de sedutores, a arquiteta Tânia Batella, da Divisão de Urbanismo da Secretaria de Obras, e pelo então diretor técnico da Terracap, engenheiro Luiz Alberto Cordeiro. ;Tínhamos muitas responsabilidades, mas tudo o que se pensava em fazer alguém dizia: ;Lucio Costa não deixa;. Um dia resolvi fazer uma visita a ele, no Rio. Ele não estava sabendo de nada, e todos estavam falando em nome dele;, relembra Cordeiro.

A arquiteta da Viação e Obras fez o mesmo percurso: ligou várias vezes para o inventor de Brasília, que já estava na casa dos 80 anos. Telefonava sempre que surgia uma dúvida. Até que Cordeiro decidiu fazer a visita ao arquiteto em seu apartamento no Leblon, no Rio. ;Foi uma conversa de miolo de pote. Ficamos vendo fotos; ele se divertiu, foi gostoso. Até que fiz o convite para ele voltar a Brasília e ele aceitou.; Já na chegada, vindo do aeroporto pelo Eixão, Lucio Costa percebeu que o renque de árvores nas superquadras começava a fazer o efeito previsto no Memorial Descritivo do Plano Piloto. ;Foi emocionante, a cidade estava toda verde, florida. Ele ficou extasiado. E comentou: ;Pode-se ver o cinturão verde das quadras;;, recorda-se Tânia Batella. O arquiteto chorou, lembra Cordeiro.

Foi um pouco mais demorada que as anteriores, a quinta visita de Lucio a Brasília. Ele e Maria Elisa Costa ficaram uma semana na cidade, hospedados no Hotel Nacional. Não havia nenhum compromisso oficial, exceto uma visita rápida ao então governador José Ornellas. Ninguém seria capaz de supor que dentro de um Dodge Polara que passou a circular várias vezes pelo Plano Piloto estava o inventor da cidade. O arquiteto Haroldo Pinheiro, hoje presidente do CAU/BR (Conselho de Arquitetura e Urbanismo), fazia as vezes de motoristas, anfitrião e guia turístico de Lucio Costa.

Num fim de tarde, depois de mais um passeio pelas asas e pelos eixos, o arquiteto e sua filha decidem descansar um pouco no hotel. ;Fui tirar um cochilo. E doutor Lucio (já aos 82 anos) escapuliu. Sozinho, desceu a rampa que liga o Hotel Nacional ao Conic, foi ao Conjunto Nacional, andou pela Rodoviária. Era um trecho que ele havia imaginado como uma ;mistura em termos adequados de Piccadilly Circus, Times Square e Champs Elysées;. E o que ele viu foi coisa bem diferente. E não se decepcionou.

Lucio Costa, com um pulôver aos ombros: aplausos no Moinho

Ao contrário, como declarou naqueles dias: ;Isto tudo é muito diferente do que eu tinha imaginado para esse centro urbano, como uma coisa requintada, meio cosmopolita. Mas não é. Quem tomou conta foram esses brasileiros verdadeiros que construíram a cidade e estão legitimamente. É o Brasil; E eu fiquei orgulhoso disso, fiquei satisfeito. É isso. Eles estão com a razão, eu é que estava errado.;

Mesmo alvoroçado com as emoções de reencontrar o Plano Piloto, Lucio Costa queria notícias de Mário Fontenelle, autor das mais importantes fotografias da construção de Brasília, entre elas a mítica imagem do cruzamento dos dois eixos, o Monumental e o Rodoviária, o ;sinal da cruz;. O fotógrafo estava doente e, aos 65 anos, vivia num abrigo de idosos. O arquiteto quis visitá-lo e, numa manhã bem cedo, ele, a filha, Haroldo Pinheiro e o arquiteto Adeildo Viega de Lima partiram para o Lar dos Velhinhos Maria Madalena, no Núcleo Bandeirante.

Encontraram um homem com o braço esquerdo paralisado, deitado numa cama num quarto que dividia com dois outros velhos, e cercado de equipamentos fotográficos e caixas de fotografias e negativos. Passada a surpresa ; Fontenelle reconheceu Lucio Costa de imediato ;, Fontenelle começou a tirar imagens de dentro das caixas e a mostrá-las ao arquiteto. Eram todas de Brasília. Puxou uma escala (régua triangular usada em arquitetura) de um canto escondido e disse: ;O senhor se lembra disso?;, ao que Lucio respondeu: ;É uma régua de escala;. Fontenelle, então, disse que havia surrupiado a régua da Novacap. ;Era do senhor;. (Mas não podia ser, porque o arquiteto não participou do desenvolvimento do projeto do Plano Piloto).

Não foi uma visita demorada e foi a última vez que aqueles dois se encontraram. Mário Fontenelle morreu dois anos depois, em 23 de setembro de 1986. Lucio Costa, em 1999.

Mais emoções viriam. Intensas como as anteriores, porém de alegre afetividade. Maria Elisa decidiu levar o pai ao bar frequentado por intelectuais, jornalistas, artistas, estudantes, o Moinho, na 114 Sul. Um grupo de amigos os acompanhava, entre eles Haroldo Pinheiro e Luiz Alberto Cordeiro. ;Chegamos por volta das onze da noite. Estava lotado;, relembra Maria Elisa. Acomodam-se à mesa até que alguém reconhece Lucio Costa e, pouco depois, ouve-se uma onda crescente de aplausos. Por trás do dentro bigode, surge um largo sorriso e, como fazem as crianças na mesa de aniversário, o arquiteto também bate palmas. ;Foi uma coisa linda;, lembra-se Cordeiro.

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