Jornal Correio Braziliense

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'Onde fui me meter', disse Lucio Costa ao visitar Brasília durante obra

O arquiteto que inventou a nova capital do Brasil veio pelo menos 11 vezes à cidade, desde a primeira, em 1957, até a última, em 1992


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Um equívoco histórico tem se perpetuado desde a construção de Brasília: a de que a cidade é criação de Oscar Niemeyer. Há explicações para o engano, todas elas relacionadas ao temperamento do inventor da cidade, Lucio Costa. Desde a apresentação do projeto ao concurso do Plano Piloto, o arquiteto já adiantara: ;Compareço, não como técnico devidamente aparelhado, pois nem sequer disponho de escritório, mas como simples maquis do urbanismo, que não pretende prosseguir no desenvolvimento da ideia apresentada senão eventualmente, na qualidade de mero consultor;.

Se Oscar Niemeyer se mudou para o canteiro de obras, Lucio Costa manteve-se equidistante, na outra ponta, o Rio de Janeiro, a velha capital. Desde que se soube vencedor do concurso do Plano Piloto, em março de 1957, até sua morte, em 1998, o urbanista esteve pelo menos 11 vezes na cidade que inventou. Em nenhuma delas ficou mais do que alguns poucos dias. Esteve apenas uma vez durante a construção. A última foi em1992, para a inauguração do Espaço Lucio Costa, na Praça dos Três Poderes. Numa dessas 11 vezes, visitou o Vale do Amanhecer e participou de um dos rituais da seita de Tia Neiva. Noutra, escapuliu da programação oficial para, sozinho, passear pela Rodoviária. E, numa delas, visitou o fotógrafo Mário Fontenelle, num abrigo de idosos.

A partir de hoje e nas próximas cinco sextas-feiras, o Correio vai descrever cada uma das vezes em que o criador visitou a criatura, o que fez, onde foi, com quem conversou e o que disse sobre a cidade que nasceu de uma ;espontaneidade original;, mas que foi, depois, ;intensamente pensada e resolvida;. Embora tenha vindo pouco a Brasília, Lucio Costa interveio de outros modos nos destinos da capital. Foram muitas as cartas, bilhetes e entrevistas escritos e concedidas em defesa da cidade.

Era uma terça-feira, 2 de abril de 1957. O resultado do concurso do Plano Piloto havia saído 17 dias antes. Lucio Costa só conhecia de fotos aéreas o terreno onde a capital seria construída. Juscelino Kubitschek levou o ilustríssimo visitante ao Cruzeiro, ponto mais alto da cidade: ;Fiquei apavorado. ;Meu Deus, que loucura, onde eu fui me meter;;, lembrou-se o arquiteto, 27 anos depois, em entrevista ao Jornal do Brasil. ;Aí foi que senti a escala desmedida. Me pareceu uma coisa em outra escala, diferente daquela em que eu tinha concebido a cidade, que, mentalmente, era mais compacta.;

O engenheiro Atahualpa Schmitz da Silva Prego, 89 anos, se lembra de ter visto o ganhador do concurso do Plano Piloto, naquele abril. Foi no Catetinho. Responsável pela construção do aeroporto, Atahualpa estacionou o jipe próximo ao Palácio de Tábuas e, curioso, se aproximou da roda de candangos que circundavam um homem. ;Vi centenas de costas formando uma muralha em torno da grande mesa de refeição (no pilotis do Catetinho).; Aos poucos, o engenheiro foi cavando espaços entre os curiosos para, tão curioso quanto os demais, saber, afinal, quem era o personagem e o que de tão importante ele dizia ou mostrava.

;É o Calhambeque!”, descobriu, com o encantamento juvenil que o engenheiro mantém até hoje. Calhambeque era o apelido de um vizinho de Atahualpa no Leme, Rio de Janeiro. Os garotos assim chamavam o homem de chapéu e bigode que sempre pedia para empurrar a Lancia, carro esportivo italiano. O vizinho do Leme se debruçava sobre um desenho em papel esticado à mesa e explicava aos atentos espectadores como seria o Plano Piloto. (Essa história está contada num dos três volumes de Entrelinhas da construção, calhamaço de 7,4kg com minuciosa descrição do nascimento de Brasília, à espera de edição).

Filha de Lucio Costa, a arquiteta Maria Elisa Costa diz que o pai veio a Brasília ;na moita;, como era costume dele. Ela não se lembra das circunstâncias dessas primeira visita. Guardou apenas a ira do pai com o endereço feito às pressas para a foto com Juscelino. Estava escrito ;Avenida Monumental; na via que o arquiteto já denominara, no memorial descritivo do Plano Piloto, de Eixo Monumental.

Na mesma ocasião da visita ao Catetinho, Lucio Costa acompanhou Juscelino até o Cruzeiro, onde, muito provavelmente, foi feita a foto célebre dos dois apoiados atrás da tabuleta, tendo ao fundo o imenso cerrado onde se deitaria o Eixo Monumental. ;A primeira vez (que veio a Brasília) foi no tempo de Juscelino, quando nós subimos naquele ponto alto da cruz e só tinha aquela trilha no cerrado;, disse Lucio ao JB.

Outra testemunha dos tempos germinais, o engenheiro agrônomo Ronaldo de Alcântara Veloso, 79 anos, não esteve com Lucio Costa naquele abril de 1957, mas garante que a imagem foi feita nas proximidades da hoje Praça do Cruzeiro). ;A foto não foi no Eixo Monumental porque o Eixo ainda não havia sido locado (demarcado).; As obras só começariam 18 dias depois.

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Há uma foto na parede do escritório de Veloso que comprova a data. Um grupo de 20 homens, liderados pelo engenheiro Joffre Mozart Parada (1924/1976), posa para o registro histórico no Cruzeiro, antes de começar a locação do Eixo Monumental. A data: 20 de abril de 1957. A abertura da via começou exatamente ali, no ponto mais alto do Plano Piloto, e não no cruzamento dos Eixos, o Marco Zero, como se costuma repetir.

Na primeira visita ao sítio onde o Plano Piloto seria construído, Lucio Costa conversa com Juscelino, como registra o Diário de Brasília: ;Às 14h, o presidente da República conferencia longamente com o arquiteto Lucio Costa, debatendo-se na ocasião os aspectos mais característicos do Plano Piloto;. No mesmo dia, o vencedor do concurso explica a todos os diretores da Novacap, incluindo o presidente, Israel Pinheiro, os aspectos essenciais da cidade que seria construída. Pelo que se depreende do texto publicado no Diário de Brasília, o arquiteto acompanhou Juscelino na visita às obras do Palácio da Alvorada (o Palácio Presidencial) e os acampamentos das empreiteiras já em atividade no canteiro de obras.