Jornal Correio Braziliense

Cidades

Conheça histórias de pessoas que venceram o distúrbio da automutilação

Os relatos evidenciam o papel da família, que deve estar atenta ao comportamento dos filhos, e a importância da ajuda de especialistas



A história de Bia (nome fictício), 22 anos, deixa claro a gravidade do distúrbio. Ela abriu a primeira ferida no braço há quase uma década e ainda não pode dizer que é uma ex-praticante de cutting. Mas ela comemora as conquistas obtidas ao longo de nove anos de tratamento com psicólogos, psiquiatras e medicamento. Aos 13, quando fez o primeiro corte, a jovem se sentia triste e a relação com o pai era péssima. ;Queria chamar a atenção de alguma forma. Dizer que eu estava ali e mostrar meu sofrimento;, conta.

A jovem voltou a se cortar aos 17, e a crise foi muito mais intensa. ;Tanto os machucados quanto as crises foram piores. Eu desenvolvi métodos para me ferir: me queimava, me cortava, batia a cabeça na parede;, diz. No auge da crise, Bia afirma ter passado uns dois ou três dias agonizando no quarto, machucando-se e tomando remédios. ;O engraçado é que a pessoa para quem eu pedi ajuda foi o meu pai, justamente com quem mais eu tinha problema. Mas só fiz isso quando eu já estava toda machucada, com as pernas dilaceradas de tantos cortes;, relata.

Imediatamente, a família procurou ajuda médica. Só então, Bia recebeu o diagnóstico de depressão e soube que era bipolar. ;Para ser sincera, tenho crises até hoje. Faz uns cinco meses que não me corto. Antes, a cada dois dias, eu me machucava e isso durou dois anos. Agora, nos momentos críticos, eu me dopo. Tomo remédio para dormir. Sei que isso é errado, não é o ideal, e vou até conversar com meu médico;, afirma.

As dores da alma refletidas em cortes na pele são uma patologia entre crianças e adolescentes, mas também acontece na vida adulta. Hoje, o estudante de gastronomia Eduardo Soares da Costa, 22 anos, fala abertamente sobre o tema. Ele começou a se cortar aos 12, mas os problemas que o levaram a isso começaram bem antes. ;Aos sete, fui para a terapia por ser ;afeminado;. Aos 12, comecei a cortar os braços com lâmina. Três anos depois, assumi a minha homossexualidade e, até os 18, fiquei bem. Quando terminei um relacionamento complicado, tive uma recaída;, relata.

Segundo Eduardo, da última vez, as feridas eram abertas na perna, próximo ao quadril. Ele voltou para a terapia e chegou à conclusão de que fazia isso para se punir, pois se sentia culpado pelo término da relação amorosa. Foram três meses de angústia. O rapaz parou de se machucar ao fazer uma tatuagem autobiográfica. ;Se o começo é amargo, o final é mais doce;, lê-se na parte externa da perna direita do estudante. ;É fundamental você se conhecer e aceitar a si mesmo. Ter pessoas à sua volta que te apoiam é imprescindível;, diz.

Renascimento
As relações conturbadas com a família são uma constante nos casos de automutilação. A publicitária Gabriela Pelli, 29 anos, viveu anos de tensão, extravasados em cortes nos pulsos. Em 1999, ela não conseguia traduzir em palavras os sentimentos de revolta que tomavam conta de sua cabeça. ;O ato de se cortar é impulsivo. Sempre tem um momento de desespero prévio. Você acorda no dia seguinte com a dor daquilo e vendo o que fez na própria pele;, lembra. ;É muito triste estar numa situação em que, no seu juízo de valor, você é a última das prioridades;, define.

A navalha e a pele da publicitária se encontraram constantemente entre os 15 e os 19 anos de idade. ;Fiz o clássico: me vesti de preto, cortei os pulsos, entrei em depressão, foi bem difícil;, recorda Gabriela, que diz ser importante identificar os ;momentos de impulso; o mais cedo possível e parar antes de se machucar. Aos poucos, ela foi conseguindo, com a ajuda de psicólogos e psiquiatras, dominar a fissura para se cortar. Mas, aos 23, quando deu à luz a filha, Isabela Pelli, tudo mudou. ;O nascimento da minha filha salvou a minha vida de tantos jeitos diferentes que não consigo nem dizer;, afirma. Desde então, Gabriela nunca mais se cortou.

Sinais
Com base no relato de praticantes e ex-praticantes de cutting, a reportagem fez uma lista de indícios do problema. Pais e professores devem ficar atentos ao pedido de socorro.
; Roupas que escondem o corpo. Mangas longas e calças, mesmo com calor intenso, podem ser uma tentativa de esconder as marcas sobre a pele. Assim como meias altas e pulseiras de pano.
; Os ferimentos geralmente são feitos nas mãos, nos pulsos e nas pernas. Observe o corpo do seu filho. Veja se há machucados ou cicatrizes.
; Mudança de comportamento. De repente, alguém que é extrovertido começa a ficar fechado, para de sair, de falar com amigos e socializar.
; Alternância de humor pode indicar problemas psicológicos que levam ao cutting.
; Há relatos de prática de automutilação após episódios de bullying.
; Ao flagrar o adolescente praticando o cutting, a abordagem deve ser a mesma de quando se encontra uma pessoa chorando. Pergunte o que está acontecendo. Não julgue. Mas também não o coloque na posição de vítima.
; O principal é estabelecer uma relação com base na confiança, no diálogo e no amor.

;O nascimento da minha filha salvou a minha vida de tantos jeitos diferentes que não consigo nem dizer;
Gabriela Pelli, 29 anos, ex-praticante de cutting


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