Gente demais. Gente que anda pelas ruas, que se esbarra em gente, que gosta de gente, que ajuda gente e que tem um orgulho danado da sua própria gente. Ceilândia, distante apenas 26km dos monumentos suntuosos de JK, escreveu uma outra história. A terra desenhada por Lucio Costa nunca imaginou que, um dia, Ceilândia, tão perto, fosse existir. E que começaria com 17 mil barracos que chegaram ali, em 27 de março de 1971, trazidos da Invasão do IAPI, numa grande área entre o Núcleo Bandeirante e o Guará. Era, até então, a maior favela de Brasília, com cerca de 80 mil pessoas, e desafiava as autoridades.
De barraco em barraco removido, nascia um assentamento, que depois virou cidade, construído com lágrima e esperança, a sua mais legítima identidade.
Manoel Jevan Gomes de Olinda, cearense de 51 anos, professor de história e um dos maiores pesquisadores da memória candanga na Ceilândia, não hesita em definir a cidade aonde chegou aos 8 anos, com a família: ;A verdadeira Candangolândia está aqui em Ceilândia. Foi a terra que recebeu os candangos expulsos depois da construção da capital. E tudo que receberam foi a exclusão social;.
Manoel Jevan fala do começo de Ceilândia, do tempo em que a cidade era um assentamento entupido de barracos de madeirite, repleto de mato, sem luz, sem água, sem destino.
A exclusão a que o historiador se refere ; e que era flagrantemente real ; hoje tomou outros rumos. Ceilândia prospera. Basta uma volta por lá e tudo fica muito claro. Metrô, prédios altos, comércio próspero, o primeiro shopping (recém-inaugurado), faculdades, um bom teatro do Sesc. Há ainda muito a ser feito. Há muito caminho para trilhar. A CEI (Campanha de Erradicação de Invasores) ficou para trás. Existe apenas em fotos amareladas nos arquivos públicos, nos jornais ou nos muitos álbuns de família.
O melhor de qualquer lugar são as histórias. Elas legitimam uma cidade. E histórias só se fazem com gente ; que anda, ri, chora, sonha, conta causos e cultiva uma esperança incessante. Por uma semana, o Correio esteve em Ceilândia. Era preciso se embrenhar ali para entender a dinâmica da cidade e dos seus moradores. Sentir o que sentem, almoçar onde almoçam, ver o que eles veem. E, principalmente, ouvir suas histórias.
E essas histórias são várias. Muito pessoais, impregnadas de emoção. Mas o que as torna iguaizinhas é o amor que todos, rigorosamente todos ouvidos pela reportagem, em todos os cantos da sua gigantesca extensão, admitem ter pela cidade onde escolheram viver. ;Tenho muito orgulho de morar aqui. É o meu lugar;, diz a estudante Letícia Natália Sousa, 17, aluna do Centro de Ensino Médio 9, no Setor O.
Ceilândia é o lugar onde o professor de história e filósofo José Gadelha, cearense de 56 anos, decidiu que exerceria o melhor do magistério. Atualmente diretor do Centro de Ensino Médio 9 (CEM) uma das escolas mais conceituadas da cidade (nos últmos três anos, foi a melhor média no Enem) ;, Gadelha define a sua gente: ;A principal virtude do povo daqui é a superação;.
Maristela Régis, piauiense de 47 anos e professora de português do CEM 9, chegou ali no começo de tudo. Ela se lembra dos dias em que dormiu debaixo de lonas, com toda a família. Hoje, comemora: ;A cidade, a partir dos anos 1990, começou a ter a própria identidade. E mostrou a sua cara;.
Euclides da Cunha, se tivesse conhecido a terra e sua gente, não hesitaria em escrever que eles são, antes de tudo, muito fortes.
"A verdadeira Candangolândia está aqui em Ceilândia. Foi a terra que recebeu os candangos expulsos depois da construção da capital. E tudo que receberam foi a exclusão social;
Manoel Jevan Gomes de Olinda, professor de história e pesquisador da memória candanga na Ceilândia