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Melhor amigo do homem: Lixão da Estrutural mostra amizade entre homem e cão

Em meio à sujeira, à pobreza e aos caminhões que circulam no local, eles não só convivem um com o outro, mas, principalmente, se respeitam e se protegem. Exemplo disso é o porte dos vira-latas que por lá andam: nenhum é esquálido e poucos possuem feridas aparentes



É assim desde que o primeiro lobo se aproximou do homem para, juntos, seguirem na perigosa aventura de viver. Por mais difíceis que tenham sido as circunstâncias, os descendentes domesticados dos lobos seguiram ao lado dos humanos, desde os da caverna até os civilizados. Depois de estimados 135 mil anos de solidária e amorosa convivência (os humanos modernos têm 200 mil anos), de conquistas inacreditáveis, de avanços territoriais e tecnológicos, de guerras mundiais e bonanças episódicas, há homens e cães que ainda compartilham as mesmas dificuldades. Ao mesmo tempo, continuam a desenvolver o mais sólido afeto que a Terra já testemunhou entre um humano e um animal.

É assim no Lixão da Estrutural, cadeia de montanhas de dejetos que avança nas vizinhanças do Parque Nacional de Brasília e de onde se tem uma visão panorâmica do Plano Piloto, de Águas Claras e das redondezas. Sobre os restos da capital do país, homens catam material reciclável, e bichos fuçam comida. A despeito das condições excruciantes de convivência, sob o sol e sobre refugos, no Lixão os filhotes conquistam protetores entre os homens e os homens desenvolvem relações de afeto com os animais. Em tramas invisíveis e inexplicáveis, bichos feios, sujos e maltratados se juntam a catadores sofridos, porém solidários. E há também os que vagabundeiam sozinhos, embora nem todos esses sejam cães sem dono. Muitos têm endereço fixo na Cidade Estrutural.



Antes das 8h, o Lixão já é um território febril. Caminhões basculantes alimentam as montanhas e catadores reviram o chão. Num desses dias ensolarados e enevoados, uma matilha de 14 cachorros se sentou placidamente uns ao lado dos outros. Vigiavam-se e vigiavam uma cadela no cio. Eram todos bichos de razoável porte, todos vira-latas (ou pit lata, como ali são conhecidos). Nenhum deles era esquálido; ao contrário, tinham gordura em quantidade razoável. Um deles mancava de uma das patas. Não tinham feridas aparentes, e eram portadores de evidente paciência. A matilha ficou sentada ao redor da cadela por mais de 20 minutos. Nas poucas vezes em que um ou outro tentou se aproximar do objeto de desejo, o cachorro mais escuro, de pelo rajado, reagiu bravamente à possibilidade de acasalamento. Quando a desejada se levantou e seguiu adiante, a matilha a acompanhou, como um séquito ávido de sexo.

Não muito longe dali, nesse mesmo momento, o cão mais famoso do Lixão sentava-se sob a sombra da barraca de sua dona, Andréia Crispim Lima Silva, 46 anos, uma das mais antigas catadoras da Estrutural. Nelo não sentiu o cheiro da cadela no cio e, mesmo se o sentisse, nada faria ; ele perdeu o órgão sexual durante uma briga. Há quatro anos, um adversário abocanhou seu pênis. A família de Andreia decidiu curar a ferida em casa. Diariamente, colocavam mercúrio no buraco onde antes havia um órgão sexual. Nelo sarou, engordou e continuou a acompanhar os donos ao Lixão, rotina de quase todos os seus 12 anos de vida. Desde pequeno, segue a dona na lida diária: compra, lavagem e venda de material reciclável.

Embora gorducho e preguiçoso, nunca deixa de acompanhar os donos desde a Vila Estrutural até a montanha de lixo. Vem a pé, seguindo o caminhão que sobe o aclive no início da manhã. Como já é quase um velhinho, ganhou um conforto: na volta para casa, pega carona na carroceria. Enquanto espera o fim do expediente, Nelo saboreia pedaços do salgado do lanche matinal de sua dona e, vez ou outra, se dispõe a fuçar restos de comida no Lixão. Em casa, o cardápio varia de ração a muxiba.

Embalagens com alimentos vencidos compõem parte considerável do lixo que cai dos caminhões. E é neles que o bicho vai buscar comida. Mas não há água, nem para os homens nem para os cães. A permanência deles no aterro sanitário depende de alguém que lhes dê o de beber. O alagoense Edilson Cavalcanti Gomes, 49 anos, está no Lixão há pouco mais de um ano, tempo suficiente para se rodear de cães. ;Fui dando água para eles e eles foram pegando camaradagem;. Edilson leva galões de água para os bichos, e os bichos o seguem de volta para casa.



O catador mora num barraco de plástico e tiras de madeirite construído nas bordas de um despenhadeiro do aterro sanitário. É um ermitão do lixo, mas, embora esteja desassistido de companhia humana, não está desapartado de parceria animal. ;Se eu for 10 vezes lá em cima, 10 vezes eles vão atrás de mim.; Os cães de Edilson não têm nome. Nomeá-los ;é muito demais;. Homem e bichos usufruem da mesma liberdade. ;Aqui, o que ganho dá pra viver e ninguém manda em mim.;

Há histórias de amor bem-sucedidas entre os cães do Lixão. Amarelinha e Branquinho é um casal de vira-latas que fuçam juntos no Lixão. Há pouco mais de dois meses, Amarelinha teve uma ninhada no matagal próximo a uma montanha de lixo. Dias depois, ela foi trazendo um a um para perto de sua protetora, a catadora Maria Márcia Monteiro de Oliveira, brasiliense de 40 anos, moradora do PSul, 15 anos de labuta no Lixão.

O casal Amarelinha e Branquinho passa o dia nas proximidades do lugar onde Márcia está trabalhando. No fim da tarde, quando a catadora vai embora, eles a acompanham até a portaria da usina e voltam para onde estavam. Pode chover, pode ensolarar, Márcia sabe que, quando chegar ao Lixão, o casal de vira-latas estará a sua espera. ;Eles vivem com a gente;. É um afeto contido num único território, o aterro sanitário.

Não existe estimativa do número de cães que vivem ou perambulam pela Usina de Lixo da Estrutural. ;Às vezes, a gente vê muitos, outras vezes não vê nenhum;, diz o Cícero Gomes Lacerda, gerente de Aterros. Há muitos que moram na vila e visitam o Lixão em busca de alimento ou atrás de uma cadela no cio. Outros avançam para além dos limites do lixo e vão se juntar às matilhas de cães do Parque Nacional de Brasília. Voltam a ser o que eram antes: selvagens.

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Ferais dentro do Parque
Embora ainda não tenham sido feitos estudos conclusivos sobre a presença de cães ferais, há fortes evidências de que eles perambulam na área de preservação ambiental. ;O parque tem realmente um problema de invasão por cães domésticos que estariam se reproduzindo aqui dentro e adotando um comportamento de cães ferais;, afirma o diretor do PNB, Paulo Carneiro.

Mesmo sem a comprovação da existência de cães selvagens no parque, é certo que há muitos cães domésticos ou de rua que transitam na área. ;De vez em quando, encontramos animais machucados e carcaças de bichos que podem ter sido atacados por cães, sejam eles selvagens ou não;. A maioria dos bichos feridos são de pequeno porte ; capivara, tamanduá, veados, mas já houve casos de antas feridas. ;É raro o dia em que a gente não vê uma matilhazinha por aqui. Dias atrás, 10 deles estavam na piscina (da Água Mineral). Acionamos a Zoonoses (Gerência da Vigilância Santiária) para retirá-los.;

Ainda este ano, espera Paulo Carneiro, pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) devem executar projeto de monitoramento e manejo dos cães que perambulam pelo parque. ;A ideia é trabalhar com programas de esterilização e de guarda responsável nas comunidades próximas ao parque.; O que inclui os cães do Lixão.