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Fernando Lemos, ex-editor executivo do Correio, era o 'cacique zen'

;Moço, está correndo a notícia de que Fernando Lemos morreu. É verdade?. Do outro lado da linha quem pedia informações seguras era José Damata, o baiano sertanejo que coordena o Cinema Voador. Confirmei a morte do Fernando, ocorrida na sexta-feira, aos 64 anos. Na noite de quinta-feira eu havia sentido um abalo silencioso ao receber a notícia de que ele estava internado na UTI de um hospital da cidade em estado grave.

O pedido de informação do Damata, em tom angustiado e aflito, tinha algo de ironia trágica. Nas décadas de 1970 e 1980, no Beirute, ele brincava de ;matar;, verbalmente, figuras ilustres da cena cultural brasileira ou brasiliense, com o ar mais cínico do mundo: ;Estou arrasado, Chico Buarque morreu!” Naquela época não havia internet, Twitter ou Faceboock e era difícil desmentir um boato. Certa vez, espalhou que Fernando, à época ocupando o cargo de secretário de Cultura, havia morrido, e a versão se propagou, rapidamente, pela cidade. Sempre muito bem-humorado, Fernando ligou para Damata para saber a repercussão de sua morte nos bares e se divertiu muito com a resposta: ;Metade ficou muito triste, metade adorou;.

Faço parte dos que ficaram muito tristes com a sua perda. Embora sereno, elegante e calmo, era uma figura polêmica, que não fazia nenhuma questão de ser unanimidade. Parecia um cacique zen, aparentemente desligado, mas atento a tudo. Trabalhei com ele no Correio na década de 1980, onde ocupava o cargo de editor executivo. Estimulou bastante o jornalismo cultural em Brasília. Era um estrategista competente, escrevia muito bem, batucando com dois dedos, rápido no gatilho. Me contou que, aos 15 anos, começou a trabalhar no Correio da Manhã, convivendo com Reynaldo Jardim, Nelson Rodrigues, Paulo Francis, Otto Maria Carpeaux; Nunca mais voltou aos bancos de uma escola.

Certa noite, Fernando estava com a mulher no carro e foram assaltados. Rodaram pela cidade durante duas horas, sob a mira do revólver de um bandido. Com sua serenidade e poder de persuasão, Fernando convenceu o meliante a deixá-los em paz. No outro dia, para surpresa de todos, publicou um artigo defendendo o assaltante, sob o argumento de que o bandido ;estava trabalhando;. Não concordei, mas admirei a audácia de pensamento.

Certamente, Fernando evocava a experiência de radicalidade que vivenciou na contracultura das décadas de 1950 e 1970, depois que os militares decretaram o AI-5, cassando todos os direitos políticos, deixando à juventude mais inquieta duas opções: a resistência pela luta armada ou o desbunde: ;Seja marginal, seja herói;, dizia um cartaz elaborado pelo artista plástico Hélio Oiticica. Amigo de Oiticica, de Glauber Rocha, de Torquato Neto, de Caetano Veloso e de Gilberto Gil (morou com os dois últimos durante o exílio em Londres), Fernando saltou da radicalidade do underground para ser consultor dos poderosos de Brasília.

Achava que era preciso insinuar boas ideias na cabeça dos governantes, por mais execráveis que fossem. Cada um que avalie o preço a pagar por essas alianças. O fato é que conseguiu influir no Tombamento de Brasília como Patrimônio Cultural da Humanidade, na criação do Polo de Cinema e da Cidade da Paz. Trouxe Glauber para escrever nas páginas do Correio, quando era estigmatizado por apoiar a redemocratização proposta por Geisel e Golbery. Que me desculpe o Fernando, que não gostava de lamentações e sempre celebrava a vida. Mas sentirei falta da sua sensibilidade, da sua inteligência, da sua liberdade, da sua audácia e da sua generosidade.