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Pioneira guarda lugar que, antes da construção de Brasília, era uma fazenda



Aos 81 anos, Maria Hilário Ribeiro guarda a certeza de ter escolhido o melhor lugar para viver. Quem vai ao Engenho das Lajes, um lugarejo rural com pouco mais de 4 mil habitantes, na região do Gama, pode não compreender. Mas aquele é o paraíso de Maria, distante 30km do Plano Piloto. Sem asfalto ou qualquer sinal de infraestrutura básica e castigado por enchentes nos últimos tempos, o pequeno bairro é um lugar especial, aos olhos carinhosos da pioneira. Antes de tornar-se uma vila, na década de 1950, o Engenho das Lajes era uma fazenda com o mesmo nome.

Pertencia ao mineiro Leonel Hilário Ribeiro, pai de Maria. A menina criou-se ali, entre córregos e árvores, em tempo de muita liberdade.
Em 1960, após a construção de Brasília, começou a ocupação de terrenos ao redor do sítio. Chegaram famílias inteiras para viver em meio ao nada. Não havia sequer um comércio onde pudessem alimentar-se ou uma igreja para irem aos domingos. A população infantil e jovem crescia com velocidade. Surgiu a necessidade de ter uma escola na região. Um professor chamado Alonso bateu à porta dos Ribeiros, para fazer um pedido de aceitação pouco provável.

O educador queria a doação de parte da fazenda para construir um colégio público. O fazendeiro Leonel tinha 12 filhos. Somente os homens recebiam autorização para estudar. As mulheres permaneciam semianalfabetas. ;Ele dizia que mulher tinha de cuidar de casa. Não tinha necessidade de aprender mais nada;, lembra Maria Hilário. Ainda assim, privada do acesso às letras e aos números, a moça entendia a importância da educação. Foi ela quem insistiu com o pai para dar um sim como resposta ao professor.

Dias depois, o educador recebeu sinal verde para construir o centro de ensino infantil em um lote doado, de papel passado, pelo dono da fazenda. ;Tinha criança demais aqui na região. Sem escola, elas ficariam à toa o tempo todo. Não daria em coisa boa;, diz Maria. Ela e outros moradores da região começaram uma campanha para conseguir material de construção a fim de erguer o colégio. Maria pegava carona em motos e subia na garupa de cavalos em busca de quem quisesse ajudar com doações e esforço braçal.

Rumo aos estudos
Com insistência, a escola saiu do papel. A inauguração ocorreu em 1964. Hoje, leva o nome de Escola Classe Engenho das Lajes (Ecel) e fica bem em frente à casa de Maria, uma figura querida e conhecida de toda a população local. A Ecel tinha apenas até a 4; série. Quando os filhos da pioneira passaram dessa etapa, precisavam deixar o bairro para seguir com os estudos. Maria pegava os meninos pelas mãos e ia até a rodovia.
Lá, abordava caminhões. A maior parte dos condutores era conhecida. Maria pedia carona para os filhos até Brasília. ;Era o único jeito de eles conseguirem terminar os estudos. Minha leitura é pouca, muito pouca. Mas eu sei a importância da educação na vida de uma pessoa. É a única herança que se deixa nessa vida.; Tempos depois da abertura da escola, Maria passou a trabalhar como servente e merendeira no colégio. Aposentou-se há 20 anos.

Mais de meio século depois desses primeiros tempos, ainda se preocupa com o colégio, onde atualmente leciona sua filha mais nova entre as mulheres, Marli Ribeiro, 45 anos. ;Fico emocionada de ver minha filha como professora na escola que ajudei a construir. Graças a Deus, todos os meus filhos seguiram um caminho do bem.; Quando a pioneira vai à escola, é motivo de festa. As crianças a recebem com beijos e abraços.

Comunidade
Maria doou também parte do terreno da fazenda para a construção do Centro Comunitário do Engenho das Lajes. Lá, os vizinhos se reúnem semanalmente para falar dos problemas da comunidade, exigir seus direitos e discutir ideias para melhorar a vida no local. O espaço tornou-se ponto também para distribuição de pão e leite, oferecidos pelo governo. É Maria quem cuida do Centro Comunitário, até hoje. ;Sinto tristeza de a minha cidade não ter asfalto até hoje. É um poeirão danado na época da seca;, queixa-se.

A fundadora é considerada a guardiã do espaço. ;Se alguém quebra as telhas, me chamam. Se tem menino fazendo arte lá dentro, também. Sou eu quem cuido. As pessoas não têm zelo. Usam, mas ninguém quer saber de conservar.; A pioneira guarda as plantas da construção da escola e do Centro Comunitário. Jamais recebeu uma homenagem pública, nenhuma medalha de reconhecimento pela contribuição para o povoado às margens da BR-060, que liga Brasília a Goiânia. ;Não tem problema. Quem reconhece a bondade da gente é Deus;, resigna-se. Católica, ela frequenta a missa na única igreja da região. Apesar da falta de pompa, a mãe de oito filhos, avó de 21 e bisavó de outros 10 é respeitada na cidade.

Quando ela sai para passear, é abordada por pessoas de várias idades, que sempre pedem a sua bênção e beijam-lhe a mão. ;A bênção, vó Maria;, elas dizem. ;Deus te abençoe, meu filho;, ela responde, mesmo quando não reconhece o interlocutor. Maria Hilário abriu mão de suas posses para tornar-se patrimônio do Engenho das Lajes.

;;Minha leitura é pouca, muito pouca. Mas eu sei a importância da educação na vida de uma pessoa. É a única herança que se deixa nessa vida;

;Maria Hilário, pioneira e doadora do terreno da única escola pública do Engenho das Lajes

A vida de Maria, em números
81 anos
8 filhos
21 netos
10 bisnetos

Para saber mais:
Cidade virou notícia
O país ouviu falar do Engenho das Lajes há pouco mais de uma semana. As chuvas de janeiro alagaram a cratera de uma obra parada no povoado. Johne Vinícius da Silva, 6 anos, morreu afogado na vala de aproximadamente 2 metros de profundidade. Ele andava de bicicleta quando caiu no buraco cheio de água. Moradores do local protestaram e pediram a conclusão dos trabalhos de infraestrutura, que foram retomados. Atualmente, o local é de responsabilidade da Administração Regional do Gama. Já foi cogitada, porém, transferir a gestão para Samambaia.