Agora
(Titãs)
"Agora que a agora é nunca
Agora sinto minha tumba
Agora o peito a retumbar
Agora quartos de hospitais
Agora tenho mais memória
Agora não me despedi
Agora ainda estou aqui
No próximo fim de semana, será Natal. As pessoas se programam para uma festa. Árvore, presentes, luzes, ceia e crianças. A professora Vânia Borges de Carvalho, 43 anos, passará essa noite em sono induzido por remédios. É por recomendação médica. Em 24 de dezembro de 2010, a mãe dela, dona Hortência Borges, enterrou três netos e o genro. Era a família de Vânia: Jarismar, 46, o marido; Ana Beatriz, 12, Pedro, 9, Júlia, 5, filhos da educadora. Agora, Vânia terá de dormir para não reviver a tragédia de sua vida, quando, a caminho das férias, o carro em que viajava se envolveu em um acidente, na BR-020, a caminho de São Miguel, interior do Rio Grande do Norte. Lá, eles têm parentes.
Desde domingo e até amanhã, o Correio publica uma série de reportagens que conta o drama de quem perdeu pessoas queridas em desastres na vias do DF. São órfãos do asfalto. Os nomes das 449 vítimas serão publicados no período.
Vânia era mãe de quatro. Seu primogênito, Rayran, 16, morreu depois, no Hospital Regional da Asa Norte (Hran). Era 5 de janeiro. Nesse mesmo dia, a professora entrou em coma. Ficou desacordada 360 horas. Durante três meses, tomou ; dia, sim, dia, não ; banhos com bucha de cobre, parte do tratamento para queimaduras de segundo e terceiro graus. A pele destruída precisa ser retirada aos esfregões para evitar uma infecção. Vânia saiu do acidente em chamas. Pulou por cima do marido, no banco do motorista, pela fresta do vidro.
O carro explodiu várias vezes. Pegando fogo, Vânia olhou para trás, em busca das crianças. Viu Pedro sem escoriações. Berrou por socorro. Ana Beatriz tinha sangue no rosto. Vânia não viu Júlia. Soube depois que a garotinha, com o impacto da batida, escorregou para debaixo do banco. Rayran foi arremessado. Vânia sacudia o marido. Ele estava desacordado. O Zafira da família foi atingido por um Voyage ao tentar fazer um retorno na rodovia ; a 50 quilômetros de Posse (GO) e a 300km de Brasília. O desastre impressionou as testemunhas. Vários motoristas pararam e pediram que outros ajudassem com o extintor de incêndio.
Já deitada na grama, ao lado do marido, retirado ainda com vida do Zafira, Vânia fez um apelo: ;Jarinho, salve as nossas meninas;. Raimundo Jarismar Moreira de Carvalho tinha uma profissão nobre. Ele buscava leite materno, armazenava e abastecia os hospitais. Na casa de Vânia, um sobrado de três pavimentos na QE 38 do Guará 2, era quem cozinhava. Costumava lavar as louças. ;Ele dizia que era para eu não estragar as unhas.; Aos fins de semana, tocava no violão Zé Ramalho, Fagner e Roberto Carlos. Era um pai amoroso e um marido dedicado. Mas naquela quarta-feira de dezembro, Jarinho não pôde fazer mais nada.
Vânia viu o próprio corpo derreter. Perdeu parte do braço direito, do seio, da barriga, das pernas. Mas não sentia dor. Estava anestesiada. À sua volta, as pessoas filmavam com o celular as explosões. Um desconhecido estendeu a mão para um de seus filhos. Tirou Pedro de dentro do carro em labaredas. Queimou todo o braço. O menino, o mais apegado à mãe, morreu ao chegar ao Hospital de Base do DF. Na ambulância, Rayran pedia água. Teve queimaduras e recebeu uma forte pancada na cabeça. Como poderia ser submetido a uma cirurgia, a brigadista controlava a sede do garoto com um conta-gotas.
Durante dias, mãe e filho tiveram as feridas tratadas por médicos e enfermeiros do Hran, que guardaram segredo sobre o destino dos familiares de Vânia, até que a mulher tivesse condições de ouvir o desfecho da colisão. Ela pressentiu a morte do filho mais velho. Teve muita falta de ar. Naquele dia, as feridas doeram mais. Ouviu quando os aparelhos que mantinham a vida de Rayran anunciarem o fim da vida do menino. Apesar de todo o sofrimento, ela nunca desejou a própria morte. Na entrada do Hran, foi recebida por um médico de quem não se lembra o sobrenome. Mas de quem nunca esquecerá a cor dos olhos. ;Eu pedi: ;Doutor, não me deixa morrer.;;
O médico Mário Frattini Ramos foi um dos que ajudaram Vânia a contar a história de sofrimento e superação. Não tem uma noite que ela não sonhe com o marido, com quem viveu 19 anos. Na casa dos pais, onde mora hoje, os quatro filhos estão por toda a parte, em porta-retratos. Atrás de respostas, Vânia se apega à religião. É espírita. Dona Hortência é católica. Mas tem ido à Casa do Caminho, um centro espírita, no Guará 2, para buscar cartas que as duas netas escrevem para a filha. Essa é a verdade para Vânia.
Prejuízos
Não há especialista no mundo que consiga dimensionar a dor de Vânia. Ficou órfã dos quatro filhos e do amor de sua vida. Mas o Estado tem a obrigação de calcular em cifras o valor dessas e de outras milhares de mortes no asfalto, tentar entender os motivos e diminuir o índice dos desastres. Nos últimos dois anos, o prejuízo estimado com os acidentes em todo o Brasil foi de R$ 75 bilhões. Dinheiro envolvido na morte de 84,7 mil pessoas e na internação de 278,4 mil feridos. Esses números são calculados pelo movimento Chega de Acidentes, que envolve entidades de trânsito.
O custo bilionário das tragédias nas pistas minimizaria a fome (compraria 313,9 milhões cestas básicas) e melhoraria o tráfego de São Paulo (o dinheiro construiria 513km de metrô). Se os R$ 75 bilhões fossem empregados em programas habitacionais, poderia erguer 2,1 milhões de casas populares. Os prejuízos financeiros levam em conta danos materiais, indenizações, reabilitação de feridos, internações e até o que as vítimas deixaram de produzir.
Em 2011, 449 pessoas morreram em 395 acidentes fatais no DF. Milhares ficaram feridas. A violência no trânsito custou a vida de toda a família de Vânia. Para o DF, os desastres ocorridos em um ano somaram R$ 1,5 bilhão em perdas materiais, segundo cálculos do Detran. ;Os acidentes são uma tragédia para quem morre, para os que ficam e até para o Estado, com o dever de reabilitar sequelados;, constata Celso Gomes, especialista em Operação de Sistema de Transporte e Segurança do Detran.
Há um ano, desde que deu entrada no Hran, Vânia fez várias cirurgias de enxerto. A pele da panturilha foi usada para reconstruir a cintura, os braços e os seios. Destra, a professora treina a escrita com a mão esquerda. Teve de tirar o baço, quebrou a bacia. Faz fisioterapia no Hospital Sarah Kubitschek. É atendida pela Associação dos Portadores de Sequelas por Queimaduras (Aposeq), que trabalha com serviço voluntário. É de lá que recebe óleo, filtro solar e as malhas para tratar as feridas.
Vânia é uma fortaleza. Agora, é ela quem ensina os pais. Ivo Felix dos Santos, 70 anos, teve um AVC. Achou que não ia suportar a vida preso aos movimentos com limitações. Mas ao ver a filha todos os dias lutando para sobreviver, ele se fortaleceu. ;Como posso desistir, tendo uma filha como essa?;, questionou. A mulher quer contar a sua história. Vai escrever um livro: As pérolas do asfalto.
Vítimas de 2011
José G. C., 43;
Jose J. L., 35;
José L. R. M., 39;
José M. R., 31;
Jose M. P., 64;
José N. S., 72;
José R. L. S., 53;
José R. S. S., 25;
Jose T. S., 52;
José T. O., 57;
Josevaldo X. R., 30;
Josikley X. S., 23;
Juciene F. N., 29;
Juliana D. B., 26;
Julio C. T. J., 20;
Jurandir G. N., 54;
Keystone G. A., 14;
Laís C. P. L., 21;
Lázaro F. N. C., 27;
Leandro P. L., 18;
Leonardo L. L. M., 27;
Leonidio P. L., 78;
Luci A. C., 31;
Luciano C. L., 27;
Luciano X. B., 23;
Lucimar S.J., 35;
Luis B. A., 44;
Luiz S. P., 47;
Luiz G. S., 32;
Luiz N. S., 47;
Magna A.S. N., 29;
Manoel A. O. M., 32;
Manoel G. A., 35;
Manoel P. S., 40;
Manoel V. J., 39;
Marcelo A. P., 22;
Marcelo F. R., 40;
Marcelo S. B.S., 37;
Marceone N. R., 35;
Marcia C. R. C., 29;
Marcio S. S., 29;
Márcio F. C., 35;
Marcos A. T., 37;
Marcos E. P. C., 33;
Marcos L. S., 51;
Marcos S. S., 30;
Maria C. R., 66;
Maria G. M. C., 61;
Maria I. S., 62;
Maria J. N., 80;
Marina M. Q. R., 25;
Mário S. P. S., 36;
Massilon B. S., 58;
Matilde F. S. L., 47;
Mauricio D. S., 34;
Militão M. D., 47;
Moacir N. S., 64;
Nadir R. S., 69;
Não identificado, ,
não informado
Não identificado, não informado
Nelson C., 34;
Nelson D.S., 29;
Nicolau D. S., 36;
Nielson S., 31;
Nilsa A. P., 69;
Nilsa G. M., 76;
Nilton S. R., 34;
Ofir A.S. J., 33;
Ozelita A. F., 84;
Patricia L. G. M., 32;
Paulo C. A., 48;
Paulo C. R.L., 41;
Paulo J. S., 33;
Pedro J. L., 54;
Pedro D.S. C., 49;
Pedro H. O., 2;
Piaveson A., 80;
Rafael A. R., 28;
Rafael G. A., 25;
Raimundo O. S., 57;
Ranielly D. C. L., 15;
Ranieri B. P., 31;
Raylane M. R., 22;
Regis L. F.V., 37;
Renato D. S., 36;
Ricardo F. A. J., 20;
Ricardo R., 34;
Rita M. A., 44;
Roberto C., 69;
Robson L. J., 41;
Rodrigo A. F., 29;
Rodrigo S. S. V., 21;
Romilson S. S., não informado;
Sandro V. L., 38;
Santos S. S., 45;