A quantidade de tragédias em 2011 não coube no ano. Serão 365 dias, mas até 4 de dezembro, o Departamento de Trânsito do DF (Detran) já havia registrado 395 desastres com mortes. Esses acidentes mataram 449 pessoas, mais de uma a cada 24 horas. Às vezes, duas, três de uma mesma família. Os dados são atualizados todos os meses pelo Detran em um informativo intitulado Placar da Vida, cujos números, no entanto, classificam a morte no asfalto. São pedestres, motoristas, ciclistas, motoqueiros e passageiros que entraram para as estatísticas brutais do trânsito, onde centenas de vidas são despedaçadas e sonhos atropelados para sempre, todos os anos.
Foi assim, em um estalo, que Cléber de Figueiredo, 65 anos, perdeu a oportunidade de conhecer o primeiro neto, sua principal expectativa desde que a filha ficou grávida. Lucíola de Sena havia entrado no sétimo mês de gestação. Acha que pressentiu a morte do pai, que estava hospitalizado havia dois dias por causa de um acidente.
Era domingo. Como de costume, Cleber acordara perto das 5h30. Antes de amanhecer, já tinha lido o jornal, um de seus hábitos. Naquele dia, teve um almoço especial com os filhos e a mulher, Wagna, com quem viveu por 43 anos. Tirou um cochilo à tarde. Quando despertou, foi à casa de um amigo. Eles eram vizinhos em Ceilândia. Mineiro de Belo Horizonte, Cleber tinha um talento, o de fazer redes para pesca. Iria pegar a linha para começar uma nova trama.
Não chegou ao destino. A menos de 100 passos da casa onde morava, na QNM 02, o aposentado foi surpreendido por um carro em alta velocidade que avançou o sinal vermelho e acertou o caminho dele. O homem que remediou durante anos um problema no coração, superou um derrame aos 64 anos e controlou a pressão alta morreu das complicações provocadas por traumatismo cranioencefálico, em 14 de janeiro, às 3h50. Por volta desse horário, Lucíola acordou sobressaltada. Sentia um calor, falta de ar, palpitação, angústia. Meia hora depois, recebeu o telefonema de uma cunhada que avisava sobre a morte do pai.
Na barriga, Lucíola sentia as contrações. Era o pequeno Cleber. A certidão de óbito informa que o avô viveu uma vida de funcionário público. Servia ao Palácio do Buriti. Não ficaram ;bens a inventariar;. Ele deixou filhos: Leonardo (39 anos), Luciana (36) e Lucíola (31). E o nome que o neto herdou.
Cleber está entre os 60 idosos que morreram no trânsito ao longo de 2011. Até 4 de dezembro, o Placar da Vida registrou 125 mortes por atropelamento, uma a cada três dias. O aposentado que fez órfãos filhos e o neto que nem conheceu é parte desse triste levantamento. Os números não deixam dúvidas. O trânsito é perigoso para motoristas e passageiros. E ainda mais fatal para quem precisa atravessar as ruas. Segundo dados do Detran, os pedestres são 28% do total de vítimas. Outros 228 conduziam seus veículos, mas perderam o controle da própria vida em acidentes letais. Morre-se mais em moto (92 ocorrências em 2011), mas também são marcantes os dados de ciclistas: ao todo, 34 foram massacrados nas pistas.
Números assustadores
As mortes no trânsito alcançam estatísticas de guerra. Sem crises diplomáticas, o Brasil registra baixas só reunidas em bombardeios. Documentos secretos dos Estados Unidos divulgados pelo Wikileaks indicam que em sete anos de guerra no Iraque 109 mil pessoas perderam suas vidas, entre civis e militares. No Brasil, onde a guerra não é declarada, em três anos esse número é superado.
Estimativa do Centro de Experimentação e Segurança Viária (Cesvi Brasil) é de que 37 mil pessoas vão a óbito por ano em acidentes em vias e rodovias. O Ministério da Saúde aponta que em 2006 foram 28.995, em 2007 outros 37.407 e no ano seguinte, mais 36.666 mortos. Este ano, a chacina já ultrapassou a barreira das 40 mil vítimas. Além disso, a cada ano 180 mil feridos no asfalto são internados para tratamento.
Nas pistas do Distrito Federal morreram, nos últimos 15 anos, 6.715 pessoas. Tragédia comparável a dois atentados como o das Torres Gêmeas, que destruiu 2.976 vidas. No trânsito, as mortes representam um terror persistente. O ano de 2011 foi violento como tem sido na última década e meia (veja quadro abaixo). Na virada, os 2,6 milhões de cidadãos candangos vão fazer planos de saúde, paz, prosperidade, amor. Mas a série histórica de mortes sentencia pessoas e estabelece uma média dramática. A violência no asfalto vai encerrar os planos, sonhos e projetos de 400 pessoas antes do réveillon de 2012. Se nada for feito, muito provavelmente 500.