Que Justiça pode reparar a morte de duas crianças na primeira infância e as feridas abertas no corpo e na alma de seus pais? Ao oferecer uma denúncia por crime com dolo eventual para o acidente de trânsito que matou João Marcos e Pedro Lucas, o Ministério Público se vale de uma tese pouco usual e considerada polêmica entre juízes na tentativa de encontrar a medida da punição para uma tragédia provocada por imprudência.
Contrariando entendimento mais aceito nos tribunais de que os acidentes de trânsito ocorrem à revelia da vontade dos motoristas, o promotor de Justiça do caso fatal em Guapó (GO) propôs punição severa a Fabrício Rodovalho sob a convicção de que ele assumiu o risco de matar as duas crianças e machucar gravemente os pais delas ao dirigir em alta velocidade e ultrapassar em local proibido.
O dolo eventual é uma tipificação do Código Penal que qualifica o crime de gravidade intermediária, entre os eventos dolosos ; quando a pessoa teve o propósito de matar ou machucar ; e culposos, nas situações em que não houve essa intenção. O Código de Trânsito Brasileiro não prevê o crime doloso. Mas em casos de acidentes graves, há uma corrente de promotores de Justiça que combina itens da legislação de trânsito com itens da penal para enquadrar motoristas que matam em crimes por dolo eventual, quando alguém assume o risco de matar ao agir de maneira irresponsável. Embora sejam tratadas como condutas isoladas, atitudes imprudentes podem provocar consequências irreparáveis, como no caso de Vyviane e Marcos.
Defesa
Fabrício Rodovalho não tinha passagem pela polícia, até provocar o acidente. Pela primeira vez desde que as reportagens sobre a tragédia começaram a ser publicadas, em julho, ele falou com o Correio. ;Acha que saí de casa disposto a matar aquelas crianças? Não sou uma pessoa do mal. Rezo todos os dias pelos pais das crianças e por mim. Minha cabeça não está boa;, disse.
Advogado do motorista, Roberto Serra da Silva Maia afirmou que assumiu o caso recentemente e ainda não teve acesso aos autos. Ele considerou um ;exagero jurídico sem precedentes; a denúncia por dolo eventual contra o seu cliente. ;Vamos fazer de tudo para desclassificar essa interpretação para a análise da culpa. Agora virou moda o Ministério Público tratar acidentes de trânsito graves como crimes dolosos. Recentemente o Supremo Tribunal Federal desqualificou um caso em que o motorista estava, inclusive, bêbado, o que não era a situação de Fabrício;, alegou o defensor do motorista.
Por não estar familiarizada com o caso da família Campos Moraes, a professora de direito penal da Universidade de Brasília (UnB) Soraia Mendes preferiu tratar a questão em tese. Ela explicou que há um entendimento mais comum entre juízes de que os crimes de trânsito fogem, muitas vezes, ao controle do motorista, o que explica serem na maior parte das vezes tipificados como culposos. Soraia, no entanto, ponderou que cada caso é analisado de acordo com as próprias circunstâncias e reforçou ser da competência da Justiça, na instrução do processo, ouvir testemunhas e fazer diligências para formar a própria convicção, podendo concordar com a tese do Ministério Público de dolo eventual ou desqualificá-la para crime culposo. Desdobramento que, no caso de Vyviane e Marcos, deve ser conhecido nos próximos dias, quando a Justiça decidirá se aceita a denúncia do MP.