Mudar a forma de olhar para a própria cidade por meio do contraste entre o grande e o pequeno, o distante e o próximo, foi o que o fotógrafo panamenho-espanhol Liberto Fillo fez com as imagens das praças aconchegantes de Barcelona. Os espaços foram clicados do ponto de vista aéreo, de prédios e residências. As fotos dialogam com as filmagens da artista plástica Karina Dias, que capturou monumentos e praças de Brasília, procurando nas imagens a proximidade entre as pessoas e a familiaridade de uma capital muitas vezes conhecida como fria e distante. Enquanto aqui o transporte é feito principalmente de carro, lá, persiste o hábito de caminhar. Os artistas, no entanto, invertem os conceitos. Os trabalhos, reunidos na mostra Brasília-Barcelona, entre duas paisagens, estão expostos lado a lado em uma galeria da cidade catalã.
Karina registrou imagens da Igreja Nossa Senhora de Fátima, na 308 Sul, o movimento da vizinhança no local e blocos da quadra residencial, considerada modelo de composição urbana no Plano Piloto. No Lago Paranoá, optou por um ângulo que torna difícil reconhecer Brasília. A artista filmou o espelho d;água da mesma posição durante quatro meses, na tentativa de mostrar características da capital que caberiam em qualquer cidade, a fim de torná-la comum. Karina fez imagens também da Esplanada dos Ministérios. Com a meta de trazer as distâncias e a grandeza do espaço para o tamanho dos passos de um brasiliense, humanizando um trajeto normalmente percorrido de carro, a artista priorizou um cenário em que não se vê o Congresso Nacional, mas apenas uma pessoa caminhando.
Com o trabalho, a artista tenta mudar o ponto de vista do brasiliense e incutir no observador um questionamento: como transformar a monumentalidade de uma cidade em que as praças são distantes e as pessoas caminham pouco em intimidade? Para passar essa reflexão, ela colocou os vídeos em caixas de cor preta, pequenas. Ao abri-las, o espectador assiste ao vídeo como se estivesse contemplando um cartão postal animado. ;Chamo a série de Suvenir Brasília. É um objeto que evoca uma memória, mas também é a própria memória. É minha lembrança da cidade. A proposta e o eixo da minha pesquisa são que é possível reapresentar esses espaços da cidade. É como revelar uma cidade invisível, que existe diferente para cada morador, no mesmo espaço;, explica Karina.
De acordo com a artista plástica, à medida que o brasiliense passa pelos espaços da cidade, solidificam-se as memórias e as sensações que cada local importante tem para ele, que se torna, por isso, insensível a tais emoções e sentimentos. Para combater essa ;cegueira;, é preciso mudar a forma de ver Brasília. A postura faz com que o caminhante se torne mais consciente do local em que vive e que se transforma com o tempo. ;Construímos nossos lugares na cidade, e eles são distintos em cada um de nós. São camadas de cidade reveladas pela nossa experiência. É preciso manter o olhar alerta e desperto para ver, no lugar que você sempre conheceu, outra coisa;, ensina a artista.
Reflexão
A primeira fotografia do projeto de Liberto Fillo é a vista da casa do fotógrafo. Em seguida, ele subiu ao terraço de um hotel próximo ao local em que trabalhava. Decorrido um ano, vislumbrou nas imagens um projeto maior, que poderia fazer com que os observadores refletissem sobre a cidade e como o significado dos espaços tem mudado na velocidade das transformações de um mundo globalizado. ;Aqui em Barcelona, as pessoas utilizam as praças como pontos de encontro e referência quando querem se encontrar. Isso está deixando de ser assim. Os lugares estão se transformando rapidamente e já não são os mesmos que estão nas fotos hoje. Vi os vídeos de Karina. Sinto que a relação entre as pessoas e os espaços públicos torna os lugares habitáveis;, resume.
Foi uma das curadoras do evento, Graça Ramos, que teve a ideia de colocar as duas obras em contraste na exposição. Ela conhecia o trabalho de Karina e teve contato com as fotografias de Liberto quando compôs o texto para a exposição do fotógrafo. Na Galeria Paradigma, as imagens registradas pelo fotógrafo ficaram diante de bancos de praça, e as caixas-vídeo da artista brasiliense foram colocadas sobre a mesa. ;Conseguimos mostrar as cidades de outra forma. Elas sempre podem nos surpreender. No caso de Liberto, o próprio visitante barcelonês teve dificuldade em reconhecer as praças. Em uma Barcelona aconchegante, o fotógrafo mostrou distanciamento. Já em Brasília, a ideia foi justamente de aconchego;, pondera Graça.
Os curadores também realizaram um trabalho cruzado. Graça Ramos, que é de Brasília, fez a seleção e a apresentação das fotografias de Liberto, enquanto Víctor Ramirez, de Barcelona, falou sobre as filmagens de Karina. ;Invertemos os trabalhos também para nós, curadores. Isso fortaleceu ainda mais o diálogo;, destaca Graça. ;Temos que pensar como as cidades estão se construindo em um mundo globalizado. Com a exposição, temos um pouco do que os artistas percebem. Quebramos muros que a cidade constrói;, reflete a curadora.