O engenheiro que morreu no fim da tarde de sábado passado, em Niterói (RJ), é um dos homens mais importantes da história da construção de Brasília, mas os brasilienses sabem muito pouco a respeito de quem ele foi e do que ele fez entre os anos de 1957 e 1960. Augusto Guimarães Filho não morou nem teve escritório em Brasília, nunca fez publicidade de seus feitos e sempre que procurado insistia em dizer que Lucio Costa inventou o Plano Piloto sozinho ; o que não significa, ele reforçava, que não tenha sido um projeto longamente pensado.
O que Guimarães fez não foi pouco. Tirou o projeto do papel e o transformou numa cidade real. Definiu o lugar onde ela aterrissaria, se de frente, de costas ou de lado para o sol. Escupiu o terreno de modo tal que a Esplanada fosse exatamente o que o urbanista planejara: um terreno plano que garante "a coesão do conjunto e lhe confere uma ênfase monumental imprevista", como escreveu Lucio Costa no Memorial Descritivo. Calculou a posição dos eixos e das asas em relação ao futuro Lago Paranoá.
E não só isso. Augusto Guimarães Filho definiu a infraestrutura da cidade. Além de decidir como se daria o mvoimento de terra, fez os cálculos da disposição das veias de Brasília ; saneamento básico, energia elétrica, telefone. Também foi ele quem deu aos brasilienses a nomenclatura das superquadras ; 100, 200, 300, 500; Do escritório da Novacap (a Companhia Urbanizadora da Nova Capital), no Rio de Janeiro, Guimarães calculava as coordenadas da nova capital, em uma máquina Facit manual, e remetia os números (com até sete decimais) via rádio para o engenheiro Jofre Mozart Parada que, aqui, conferia os cálculos e procurava as coordenadas no chão vazio e imenso do Planalto Central.
O engenheiro Augusto Guimarães Filho foi o anjo da guarda que Lucio Costa precisava. Como já havia antecipado no projeto, o arquiteto vencedor do concurso não pretendia participar efetivamente da construção da cidade. No terceiro parágrafo do memorial, escreveu: " Compareço, não como técnico devidamente aparelhado, pois nem sequer disponho de escritório, mas como simples maquis do urbanismo, que não pretende prosseguir no desenvolvimento da idéia apresentada senão eventualmente, na qualidade de mero consultor."
Se seria "mero consultor", alguém haveria de pôr a mão na massa. Lucio Costa escolheu para a função o engenheiro e amigo com quem havia trabalhado no Parque Guinle, no Rio de Janeiro, projeto precursor das superquadras. Quando do concurso do Plano Piloto, Guimarães estava desenvolvendo o projeto de Lucio Costa para o Banco Aliança, na Praça Pio X, também no Rio. Como gostava de contar, o engenheiro só ficou sabendo que seu colega de escritório havia participado do mais importante concurso de Brasília quando leu nos jornais o resultado. "Mais surpreso ainda fiquei quando alguns dias depois ele me convidou para trabalhar no desenvolvimento do projeto de Brasília, dizendo que eu seria o seu representante pessoal, seria a segunda pessoa dele."
Guimarães ficou atônito com o convite a ponto de não conseguir, durante dias seguidos, dar uma resposta. "Eu lhe fiz uma proposta, pensei que fosse boa", reagiu o arquiteto. "Colocado nesses termos;", respondeu o engenheiro. As duas partes da laranja seguiram juntas até depois da morte de Lucio Costa. O arquiteto determinou que Guimarães tomasse as providências protocolares de seu sepultamento e o amigo respondeu com a fidelidade irretocável de sempre.
A mesma lealdade ao pensamento de Lucio Costa, Guimarães destinou ao projeto de construção e transferência da capital. "Ele teve muitas outras atividades, mas Brasília foi o ponto alto de sua trajetória profissional", contou um dos dois filhos, o economista Eduardo Augusto Guimarães. Havia incontáveis anos que o engenheiro estava escrevendo um livro sobre sua experiência em Brasília, A propósito de Brasília: 1.112 dias é o nome, obra inconclusa e muitas e muitas vezes reescrita, conta Eduardo. Mais recentemente, ele estava determinado a provar que a mudança da capital foi fator fundamental para o desenvolvimento do Centro-Oeste brasileiro. Pedia ao filho que tabulasse dados de, por exemplo, evolução agrícola da região para concluir o último capítulo. "Quando cheguei na casa dele, vi versões do livro por todo o lado".
Convidado para escrever o prefácio do livro, o jornalista Silvestre Gorgulho vinha tentando, havia muito, publicar a obra, mas era inteceptado pela insistência de Guimarães em rescrever o texto. "Acordo às quatro da manhã para reescrever o que já tinha escrito. Às oito, jogo fora o que escrevi", disse o engenheiro ao Correio em fevereiro de 2009. Esse é um projeto, ele disse, "pessoal e inadiável".
O arquiteto Jayme Zettel fazia parte da equipe de Guimarães na Divisão de Urbanismo da Novacap. Acompanhou e participou do desenvolvimento do projeto do Plano Piloto e testemunhou as visitas diárias de Lucio Costa ao escritório no Rio de Janeiro. "Guimarães sabia e executava exatamente o que queria Lucio Costa. Era um engenheiro de muita sensibilidade. Sem querer ofender os engenheiros, mas ele tinha alma de arquiteto."
Desde janeiro de 2010, quando caiu e quebrou o fêmur, Augusto Guimarães Filho começou a ficar com a saúde mais e mais fragilizada até que em 6 de setembro passado teve uma hemorragia, fruto de uma varise no esôfago que, somada a outras complicações no abdômen, um tumor no fígado e uma pneumonia o levaram embora no pôr do sol de sábado.
Augusto Guimarães Filho deixa dois filhos, quatro netos e 2,6 milhões de brasilienses agradecidos.