O menino descabelado e ofegante superou as dificuldades físicas e correu em direção ao homem de jaleco branco, no corredor do hospital. Abraçou as pernas do doutor como se o conhecesse de longa data. Nunca haviam se visto antes. Mesmo assim, de imediato, reconheceram-se. O pequeno paciente, como quem encontra água no deserto, chamou o atencioso médico de pai. Assim, sem explicação. Os dois, mesmo sem saber, iniciaram naquele momento uma relação para a vida toda.
A criança é João Paulo. Aparentava ter 1 ou 2 anos quando o internaram pela primeira vez. Havia sido, como todos acreditavam, a princípio, abandonado em Taguatinga pela família. Foi parar no Hospital Universitário de Brasília (HUB), com severos problemas de má-formação do intestino. Ali, em um corredor de 20 metros de extensão, passou os primeiros meses de vida na companhia de voluntários e especialistas em saúde. No mesmo local, saiu da situação de abandono e viu o rumo da vida mudar.
O médico agarrado pelo menino é Benedito Fernandes Pinto, à época com 64 anos, morador da Asa Norte, quatro filhos adultos e divorciado. O encontro entre os dois personagens tão diferentes dessa história real era improvável, mas ocorreu. Depois disso, doutor Benedito tornou-se o pai adotivo de seu paciente João Paulo. A adoção, porém, não ocorreu de imediato.
Foram necessários meses até que Benedito compreendesse que a ligação entre ele e João Paulo era definitiva. ;Eu tinha mais de 60 anos, um marca-passo no peito e morava sozinho. Adotar não passava pela minha cabeça;, lembrou. Benedito e João se conheceram quando uma voluntária do HUB convidou o médico ; que, além de trabalhar no local há mais de 40 anos como ginecologista, é voluntário em outras áreas ; para ;dar uma olhada; em João Paulo.
Benedito já havia se acostumado às mazelas humanas. Ainda assim, comoveu-se com a imagem sofrida, porém forte, de João Paulo. ;Fui tocado pelo olhar dele, que me convidava a uma grande e surpreendente viagem. Ele me transmitia: ;Olhe bem nos meus olhos, olhe forte e veja. Eu tenho um problema, mas não sou um problema;. Nele eu vi tolerância, generosidade, solidariedade e compaixão. Ele, mesmo sofrendo, era feliz. E, de alguma maneira, me dizia que eu também podia experimentar amor e felicidade.;
Admiração
O médico não encarou a situação com pena, nem viu nela uma maneira de fazer caridade. ;Eu só pensei que aquele menino tão resistente, que sobreviveu mesmo quando tudo dava errado para ele, precisava de uma oportunidade. Ele era admirável.; Durante três anos, João Paulo continuou no hospital. Enquanto o processo pela guarda do menino corria, Benedito podia levá-lo para passear no Zoológico e no Jardim Botânico, por exemplo. Matriculou-o em uma escola particular, que João frequentava, mesmo internado.
João chegou a morar em um abrigo mantido por uma organização não governamental (ONG). Lá, podia ser visitado pelo doutor. Tinha também uma ;mãe social;, uma mulher eleita pela ONG para desempenhar o papel materno. Somente quando o garoto completou 4 anos, passou a morar de vez com Benedito. ;João Paulo não veio morar comigo, eu é que fui viver com ele e para ele;, ressaltou o médico. A mãe social, nos primeiros anos, morou com os dois, na Asa Norte.
Histórico
Quando decidiu adotar João Paulo, Benedito procurou conhecer as raízes do menino, a família biológica dele. Antes disso, já descobrira que os pais de João não haviam abandonado o menino por falta de amor, como se acreditava no início. Em um dia de desespero, o pai biológico de João, um homem simples e analfabeto, enrolou a criança nascida doente em uma manta. Saiu da pequena comunidade de Riacho da Serra Branca, na Bahia, rumo a Brasília, em uma ambulância emprestada pela prefeitura de outro estado, à procura de tratamento para o filho.
Chegando aqui, o pai se assustou com a cidade grande. ;Eles não tinham como se sustentar. Iam ficar na rua. O pai deixou o filho no hospital e transferiu para o Estado a responsabilidade sobre ele. Mas deixou a Certidão de Nascimento e contatos da família. Hoje, vejo que foi um ato corajoso de amor para salvá-lo;, analisa Benedito. Os pais de João não se opuseram à adoção. O médico viajou até a Bahia, quis conhecer a família do menino. Chegando lá, lembrou-se da própria infância, em Minas Gerais.
;Eles viviam em uma cabana de palha, em uma situação crítica. Não teriam condições de cuidar de João Paulo. Lembrei-me de quando eu era criança e morava em um lugar parecido. Meus pais eram trabalhadores rurais. Trabalhei desde pequeno. Depois, fui porteiro de hotel e muito mais. Só assim, consegui me formar médico;, contou, emocionado.
A partir daí, Benedito se identificou ainda mais com João Paulo. Quando o menino completou 10 anos, foi levado para a Bahia, de volta às suas origens, mas somente a passeio. Hoje, João tem 15 anos. Cresceu saudável. Está no 8; ano da escola. Com a ajuda de professores e acompanhamento adequado, conseguiu se desenvolver. O adolescente é grato ao pai adotivo. ;Sempre penso: ainda bem que a gente se encontrou. Quero crescer, ter filhos e ser um pai como ele é para mim;, afirmou.
Benedito e João Paulo deram lar um ao outro. Quando criou os filhos biológicos, o médico trabalhava 18 horas por dia. Ofereceu-lhes conforto, estudos, viagens e amor. Mas somente hoje o doutor diz compreender inteiramente o papel de um pai. ;João Paulo me ensinou que existem necessidades mais subjetivas. Com ele, eu reparei os meus erros.;
Benedito usa uma história atribuída ao pintor Michelangelo para explicar a relação construída com João Paulo. ;Contam que Michelangelo, ao ser questionado sobre como esculpiu a Pietà (imagem da Virgem Maria com Jesus morto nos braços), respondeu: ;Nada especial. Ela estava em um bloco de mármore, eu só fiz desbastá-lo e ela se revelou;. Assim é meu papel com meu filho: criar oportunidades para que ele se revele. Em pouco tempo, me dei conta de que João também me esculpia. Hoje, decididamente, não sou a mesma pessoa de antes;, revela.