Durante muito tempo, o crack esteve associado aos miseráveis e excluídos. O perfil do usuário era sempre o mesmo: jovens pobres, da periferia ou mesmo moradores de rua, sem instrução e com poucos recursos para deixar a situação degradante em que se encontram. Hoje, quatro anos depois que a droga invadiu a capital da República, a realidade é bem diferente. A mistura mortal de pasta de coca, bicarbonato de sódio e água devasta cada vez mais a vida de pessoas adultas, escolarizadas e com razoável padrão financeiro.
No Distrito Federal, quem procura tratamento nas unidades públicas são homens e mulheres que entraram no submundo da mais barata e devastadora das drogas apesar da confortável situação financeira. O diagnóstico é traçado por uma pesquisa inédita desenvolvida no curso de biomedicina do Centro Universitário de Brasília (UniCeub). No levantamento, foram entrevistados 100 usuários de crack que passam por tratamento nos Centros de Atenção Psicossocial de Álcool e Drogas do DF (Caps ADs). E o dado é alarmante: mais da metade (52%) dos dependentes que procuram ajuda têm emprego fixo, com renda mensal entre R$ 1,1 mil e R$ 3 mil. Os números são a prova cabal de que o crack invadiu sim os lares da classe média brasiliense.
Outro dado que chama a atenção se refere à escolaridade. Quase 30% dos viciados em tratamento concluíram o ensino médio e 9% cursam uma faculdade. Para o autor do estudo, denominado ;Caracterização da Cultura do Crack no DF;, os resultados comprovam que uma epidemia sem precedentes se instalou no Distrito Federal. ;Sinceramente, as respostas me surpreenderam, pois fica claro que o crack já não respeita mais aspectos socioeconômicos, idade e nível de instrução escolar;, define o pesquisador Aurélio Matos Andrade, que passou mais de um ano desenvolvendo o trabalho.
A partir de hoje, na série de reportagens ;A droga que consome Brasília;, o Correio mostra como há quatro anos o crack chegou ao DF e, diante da inércia do poder público, enraizou-se em quase todas as cidades, ceifando vidas e destruindo famílias.
Faixa etária
Os entrevistados que responderam aos questionários da pesquisa fazem acompanhamento nos Caps ADs do Guará e de Sobradinho II, os dois maiores centros de tratamento público do DF. A faixa etária das pessoas que buscam ajuda também difere do público que o brasiliense se acostumou a ver nas ruas, formado, em sua maioria, por crianças e adolescentes que passam os dias se drogando. Aqueles que recebem assistência dos psicólogos, psiquiatras e terapeutas apresentam idade mais avançada: 35% têm entre 25 e 35 anos; 30% entre 35 e 45 anos e 12% já passaram da casa dos 45 anos. Os outros 23% são formados por adolescentes e jovens na faixa etária entre 15 e 25 anos.
Na avaliação do pesquisador, a justificativa para esse cenário encontra fundamento no amparo da família. Ele acredita ainda que há muitos anos essas pessoas lutam para se libertar do vício das drogas. ;Elas começaram a usar outros tipos de droga muito cedo e, agora, entraram no crack. Estão em tratamento porque possuem uma família estruturada e também porque já adquiriram experiência de vida suficiente para saber que chegou a hora de dar um basta nas drogas;, analisou Aurélio.
Para o professor Ronald Lamas, que orientou o estudo, a pesquisa reforça o que todos já sabem: o crack tornou-se um problema crônico de saúde pública que não faz mais distinção de classe social. ;Atravessamos uma grande epidemia no Brasil, e, me arrisco a dizer, uma pandemia mundial. Não podemos esquecer que o Brasil teve grandes avanços, com programas consolidados nessa área, mas é fato que ainda falta muito investimento. Assistimos à descontinuidade de projetos por conta de ideologias partidárias, e isso tem de acabar se quisermos reduzir o impacto que a droga causa na sociedade;, avaliou Lemas, que é professor de biomedicina e pós-graduado em política e gestão em sistemas de saúde.
Preço baixo
A pedra de crack hoje é vendida por preços que variam de R$ 10 a R$ 20. Mas, em alguns lugares, a unidade da droga pode ser encontrada por R$ 5.
Resistência
O Distrito Federal foi um dos últimos lugares no país a ser invadido pelo crack. Até 2007, aqui era território da merla, outro produto da pasta-base de cocaína, consumido por usuários de periferia. Entre os jovens de classe média, era o ecstasy que passava de bolso em bolso para embalar festas.