Os jardins de Burle Marx, integrados à arquitetura de Oscar Niemeyer e à arte de Athos Bulcão, representam uma síntese de Brasília. Para reconhecer esse valor, o governador Agnelo Queiroz publicou no Diário Oficial do Distrito Federal de ontem um decreto que garante o tombamento de todas as obras de Burle Marx em Brasília. Uma das mais conhecidas é o projeto paisagístico da 308 Sul, considerada quadra-modelo da capital federal. Mas no mesmo dia em que o GDF atestou o valor do trabalho do paisagista, um órgão do próprio governo terminou uma obra que agrediu o tombamento da cidade e revoltou os moradores da Asa Sul.
Técnicos de uma empresa contratada pela Companhia Energética de Brasília (CEB) pintaram os azulejos verdes que revestiam a casa de força da 308 Sul com tinta plástica branca. Sobre a estrutura, foram colocadas cercas de arame farpado. Há 50 anos, o espaço foi estruturado de forma a garantir a integração ao projeto urbanístico do Burle Marx. Das cores ao material, nada havia sido definido ao acaso, já que os azulejos verdes se integravam aos jardins, misturando-se com discrição às árvores.
A alteração na paisagem fez com que a comunidade da 308 Sul se mobilizasse. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) classificou a medida como uma agressão ao tombamento e prometeu tomar medidas jurídicas para obrigar o governo a restaurar o local, deixando a casa de força com as mesmas características originais.
As reclamações da comunidade e do Iphan se justificam porque a 308 Sul foi tombada em 2009. Além do decreto que garante a preservação do plano original de Brasília, elaborado pelo urbanista Lucio Costa, há também uma legislação específica que protege a unidade de vizinhança formada pelas superquadras 107, 108, 307 e 308 da Asa Sul.
O Decreto n; 30.303/2009, que assegura a proteção das características dessas quadras, foi criado porque esse conjunto é o único de Brasília que tem toda a infraestrutura idealizada por Lucio Costa: clube unidade de vizinhança, escola classe, escola parque, jardim de infância, espaço cultural, posto de saúde, áreas comerciais, além de um templo religioso ; a Igrejinha.
O superintendente do Iphan, Alfredo Gastal, ficou revoltado com o trabalho feito pela CEB e que mudou a paisagem da 308 Sul. ;Isso é vandalismo público. Os azulejos verdes eram parte da ideia de Burle Marx, eles se integravam ao paisagismo. Além disso, o governo não poderia fazer nenhuma mudança na quadra antes de consultar o Iphan, por causa do decreto de tombamento de toda a unidade de vizinhança.;
Alfredo Gastal garante que, na próxima segunda-feira, a equipe jurídica do instituto tomará todas as medidas jurídicas para que os azulejos sejam restaurados. ;As empresas que prestam serviços públicos deveriam ter mais consciência de que atuam dentro de uma área tombada. Os moradores da quadra têm absoluta razão em protestar;, acrescenta Gastal.
;Atrocidade;
Moradora da 308 Sul há 32 anos e ex-prefeita comunitária da quadra, Solange Madeira foi uma das primeiras a protestar contra a pintura aplicada sobre os azulejos. ;Estava chegando em casa, no último sábado, quando vi os funcionários de uma empresa contratada pela CEB pintando a caixa de energia. Cheguei a chorar com essa atrocidade, desfiguraram completamente o projeto da 308 Sul;, reclama Solange Madeira.
Ela lembra que, nos últimos dois anos, não houve registros de pichações no local. ;Quando estavam recuperando a Igrejinha, procuramos o restaurador, que nos ensinou uma técnica para retirar todas as marcas de spray. O local estava em perfeitas condições, não estava pichado nem sujo. Não há nenhuma justificativa para terem aplicado essa tinta plástica;, justifica Solange Madeira. No ano passado, a comunidade da região celebrou o centenário de Burle Marx no local e os azulejos verdes serviram de mural para pôsteres com trabalhos do paisagista.
Outros vizinhos aderiram ao coro de reclamações. ;Moro na 308 Sul há 43 anos e posso afirmar que os azulejos eram da mesma cor desde que cheguei aqui. Não havia razões para fazer nenhuma mudança;, comenta Ana Maria Machado Vieira. Para a ex-tesoureira da Prefeitura Comunitária Maria do Carmo Neiva, o mais grave é a cerca de arame farpado instalada sobre a caixa de força. ;Ficou parecendo um campo de concentração, isso precisa ser retirado imediatamente, porque interferiu de forma brutal na paisagem da nossa quadra;, reclama Maria do Carmo. Ela lembra que, diariamente, a 308 Sul recebe turistas e estudantes de arquitetura de várias cidades do país e do mundo, que vão observar a síntese do projeto de Lucio Costa para Brasília.
A assessoria de imprensa da CEB informou que a empresa está conduzindo um processo de reforma de pelo menos 300 subestações em todas as quadras do DF. Segundo a companhia, a ideia é aplicar a tinta plástica branca para, depois, convidar artistas ou integrantes do projeto Picasso Não Pichava para decorar os espaços. A ideia era usar a 308 Sul como projeto-piloto, para depois estender o projeto para outros locais. Ainda segundo a empresa, nas quadras onde a comunidade pediu para manter a caixa de força nas características originais, como na 106 Sul, as empresas contratadas não fizeram o serviço.
Reconhecimento
O Decreto n; 33.040/2011, publicado ontem, garante o tombamento de sete jardins e dois projetos originais de Burle Marx. Todos estão em área pública e tem livre acesso. Além da 308 Sul, ficarão protegidos os seguintes jardins: Palácio do Itamaraty, Praça dos Cristais (Setor Militar Urbano), Palácio da Justiça, Tribunal de Contas da União, Palácio do Jaburu, Teatro Nacional Claudio Santoro, do Banco do Brasil, além do projeto do Parque da Cidade.