Mudanças feitas por moradores da Asa Sul em busca de segurança alteram o tombamento de Brasília. Conhecidos como prédios JK, muitos dos blocos sem pilotis da 408 têm apartamentos no térreo, com janelas no nível da rua. Os furtos e a presença constante de pedintes e usuários de drogas na região são os motivos alegados pelos síndicos dos edifícios para fechar os arredores com grades, de forma parecida com o que ocorre no Cruzeiro Novo. Além de afetar as características originais do Plano Piloto, a iniciativa configura o uso irregular de área pública.
Pelo menos três dos 17 prédios da 408 Sul estão rodeados de barras e portões de ferro. Outros têm o isolamento com arbustos e cercas vivas. Instaladas há seis anos, as grades ficam a pouco mais de 2 metros de distância da fachada da Bloco E. Somente os moradores têm acesso ao vão em que há árvores e bancos de concreto. A síndica, Maria do Socorro Araújo, explica que a decisão foi tomada em assembleia diante da onda de crimes na região. ;A janela é muito exposta. Juntava gente de todo tipo, era ponto de drogas;, relembra.
Grande parte da vizinhança se deparou com o problema. Pela janela da cozinha, ladrões roubaram peças de roupas estendidas nos varais do apartamento da dona de casa Manoela Dornelles, 72 anos. ;Eles ficavam sentados aqui só esperando para assaltar quem passava. Não tem mais como viver aqui do jeito que era antigamente;, observa Manoela. ;Isso não prejudica ninguém. Não é passagem. Deixamos a calçada livre e fizemos rampas e escadas ao lado do bloco. Estamos cuidando e fazendo melhorias para a área;, endossa a síndica Maria do Socorro.
Apesar da polêmica, o fechamento dos acessos a prédios como os do Cruzeiro Novo acabou autorizado pelo governo (leia Memória). Os moradores da 408 Sul esperam uma solução semelhante para o problema. Um dos primeiros a adotar a medida, o Bloco F está cercado há 16 anos. De acordo com a síndica, Ana das Neves, representantes de governos anteriores prometeram à comunidade que as grades não seriam retiradas. Segundo ela, o edifício não recebeu qualquer tipo de notificação, assim como o restante da quadra.
Sem registro
A Administração Regional de Brasília não tem registros das grades da 408 Sul e ainda informa que o cercamento dos prédios JK é proibido. O superintendente do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Alfredo Gastal, afirma que a iniciativa não foi prevista na concepção de Brasília, nem mesmo nas casas das 700. ;A prática altera o tombamento. O cercamento não deve continuar, mas tem de haver garantias de segurança para a população;, avalia.
Os ataques às características originais da capital federal estão por toda parte. Dois blocos na 211 Sul e um na 208 Sul foram notificados ontem pelo Iphan por terem fechado com grades os pilotis, que deveriam ter o acesso livre conforme o plano original de Lucio Costa. O problema também ocorre em outros dois edifícios da 408 Sul, que são diferentes dos JK. ;O pilotis é público, não é propriedade dos moradores;, ressalta Gastal.
Como o Iphan tem o efetivo reduzido, o trabalho para coibir as agressões ao tombamento da cidade se concentra na Agência de Fiscalização do Distrito Federal (Agefis). O gerente de Fiscalização de Obras do órgão, Roberto Gonçalves, explicou que, desde fevereiro, as equipes percorrem as quadras 100, 200 e 300 da Asa Sul e estão na metade do serviço. ;Ainda não chegamos às 400 porque tem uma quantidade menor de invasões e os casos são menos graves;, explica.
Três pavimentos
Os primeiros blocos das quadras 400 foram projetados pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Têm três pavimentos e não se sustentam em pilotis. Ou seja, os apartamentos do primeiro andar ficam no térreo, no mesmo nível da rua. Depois, passaram a ser chamados de prédios JK. Os sete primeiros edifícios desse tipo da 408 Sul foram construídos pela Novacap entre 1959 e 1961.
O que diz a lei
O GDF publicou, em 14 de outubro de 1987, o Decreto n; 10.829 sobre o tombamento do conjunto urbanístico, arquitetônico e paisagístico da capital, com base no que foi proposto no Plano Piloto por Lucio Costa. Em 7 de dezembro do mesmo ano, a Unesco reconheceu Brasília como Patrimônio Cultural da Humanidade. Mais recente, a Portaria n; 314 do Iphan, de 1992, prevê que os prédios das quadras 100, 200, 300 e 400 das asas Sul e Norte devem ser construídos sobre piso térreo em pilotis, livre de construções que impeçam a passagem da pessoas.
Polêmica no Cruzeiro
O uso de grades nos prédios do Cruzeiro Novo provocou polêmica nos últimos anos. Em 16 de outubro de 2008, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou uma ação movida pelo Iphan e considerou que o fechamento dos edifícios ferem o tombamento de Brasília, sem estipular prazos de retirada das cercas.
Depois de idas e vindas, o então governador José Roberto Arruda sancionou a lei distrital que autorizou o cercamento dos prédios do Cruzeiro Novo. Segundo o atual administrador regional do local, Salin Siddartha, o documento continua valendo. A legislação estipula regras para o uso de grades, como a distância de 1,2m do meio-fio e 2,5m de outras barreiras.
Direitos e deveres
Brasília se orgulha e precisa se esforçar para manter o título concedido pela Unesco em 1987, de Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade. O tombamento, entre outros pontos, serve para garantir a qualidade de vida aos moradores da capital. O Estado e a própria população devem estar atentos a isso. Mas é função também do Estado garantir a segurança pública, que é, se não o maior, um dos mais preocupantes problemas que atormentam os brasilienses. O mesmo poder público que deve fiscalizar as distorções nas construções da cidade tem o dever de garantir que as pessoas não infrinjam a lei para não correrem o risco de serem assaltadas ou de perder a vida dentro de suas casas. Do contrário, vamos continuar assistindo à descaracterização do Plano Piloto como cidade tombada.