Jornal Correio Braziliense

Cidades

Obras inacabadas servem de esconderijo para bandidos e usuários de drogas

Percorrer o Distrito Federal sem se deparar com uma obra abandonada é uma tarefa quase impossível. Há esqueletos de ginásios esportivos, centros comunitários, clubes e até residências que agridem a paisagem e tiram a paz dos moradores. São construções públicas e privadas que se transformaram em redutos de usuários de drogas, homicidas, ladrões em fuga e estupradores. Na última semana, o Correio visitou 12 pontos críticos, todos inutilizados há mais de cinco anos. Um desperdício de recursos imensurável. Num desses cenários esquecidos, a jovem Vanessa*, 24 anos, foi violentada sexualmente por dois moradores de rua em 11 de junho. Ela foi rendida na SQN 108, em plena luz do dia, levada para a SQN 208 e estuprada pela dupla numa área cercada por vigas de concreto onde deveria ser erguido um prédio, mas há cinco anos nenhuma fundação foi construída. Os abusadores acabaram presos no dia seguinte.

Em Sobradinho 1, o problema é duplo. Na Quadra 7, um antigo complexo esportivo com 60 metros de comprimento e 40m de largura está ocupado por dezenas de moradores de rua. Nos dois maiores cômodos, onde deveriam funcionar os vestiários de crianças e adolescentes praticantes de futebol, basquete e vôlei, a sujeira tomou conta. Mendigos invadem os aposentos para fazer suas necessidades fisiológicas. Para piorar o cenário degradante, vários preservativos usados podem ser vistos.

Segurança privada

A duas quadras dali, uma estrutura ainda maior chama a atenção. A base começou a ser erguida para uma garagem de ônibus, há 10 anos, mas, à época, os moradores da região alegaram que o trânsito dos coletivos tiraria a qualidade de vida do bairro. A obra não saiu do papel e o dono não deu outra destinação até hoje. O estudante Victor Carvalho Santos, 21 anos, mora ao lado do esqueleto. Ele conta que a família residente antes dele na casa foi furtada cinco vezes.

Com medo de se tornarem vítimas, os pais de Victor investiram alto em segurança privada. O imóvel é todo protegido por cerca elétrica e tem seis câmeras de monitoramento ligadas 24 horas. ;A presença de bandidos nesse terreno é muito grande. Não dá para confiar que eles não vão fazer nada. Aí dentro a polícia já encontrou carro roubado, prendeu traficante. É um lugar temido;, contou.

Já a dona de casa Joana Machado, 41 anos, pensa, num futuro próximo, em vender a casa localizada em frente aos restos do ginásio. ;Nós vivemos com medo. Já entraram na minha casa uma vez e levaram algumas ferramentas. Não dá para ficar aqui por muito tempo. Essa situação já perdura há mais de 10 anos e só piora;, reclamou.

No outro extremo do DF, a situação é igualmente preocupante. Na Quadra 3 do Setor Leste do Gama, a obra inacabada de uma casa de três andares ameaça há mais de cinco anos a integridade da vizinhança. Depois que os pedreiros pararam de trabalhar no local, bandidos passaram a usar a edificação como uma espécie de QG do crime. Eles espalharam canos por várias janelas no último andar e, através deles, observam a movimentação nas ruas, inclusive, a da polícia. No dia em que o Correio percorria a região, um grupo de cinco jovens fazia gestos ameaçadores, na tentativa de intimidar a equipe de reportagem.

Clube

O garçom Cid Pereira Victor, 42 anos, recorda com saudade do tempo em que o Clube Primavera, em Taguatinga Norte, era um dos locais mais badalados da cidade. ;Até Zezé di Camargo e Luciano cantaram aqui;, relembra. A área onde fica o clube é invejável. Tem três piscinas, campo de futebol, sala de jogos e até espaço para sauna. Mas tudo está abandonado desde 2004, quando o complexo recreativo perdeu seu público e caiu em decadência. As dívidas se acumularam, vários funcionários acionaram a Justiça para exigir seus direitos trabalhistas e, como nada foi pago, a área voltou para as mãos da Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap). Existe a ideia de desmembrar o terreno e licitar os lotes.

Enquanto o clube não é contemplado com soluções concretas, o tempo se encarrega de apagar ainda mais a história do lugar. Uma das piscinas tem água acumulada e parada, ambiente propício para a proliferação do mosquito da dengue. O amplo espaço tomado pelo mato alto é um convite para bandidos. Cid enumera vários episódios de violência dentro do clube. ;Já teve troca de tiro, briga, uso de drogas, estupro. Acontece de tudo o que você imaginar aí dentro;, conta.

Na cidade vizinha, Ceilândia, mais precisamente na QNN 13, há mais de uma década a população se depara com cenas deploráveis: homens, mulheres, adolescentes e até crianças passam os dias usando crack nas dependências dos restos de um antigo ginásio esportivo, apelidado de Castelo de Grayskull. O Correio denunciou o descaso em várias matérias, mas, até hoje, ninguém conseguiu resolver o problema. O atual administrador, Ari de Almeida, promete ocupar em breve o espaço. A ideia é liberar o ginásio para um projeto que atenda jovens praticantes de esporte. O primeiro passo já foi dado com o cercamento da área e o restabelecimento da luz e da água. Um vigilante também faz a segurança do local para evitar que ele volte a ser ocupado. Resta saber se a estrutura realmente passará por reforma, ou ficará esquecida até que o próximo gestor assuma e resolva não dar a devida atenção ao projeto de seu antecessor, como ocorreu na última década.

Duas perguntas para
José Matias-Pereira, professor de Administração Pública da Universidade de Brasília (UnB)

O que o cidadão deve fazer diante de situações como a que se vê no DF?
;A população precisa entender que ficar calada, evitar se envolver nesse debate e na própria fiscalização da obra somente irá contribuir para o agravamento desse quadro de desperdícios de recursos públicos. Assim, na medida em que ficam evidenciado desvios e irregularidades em obras públicas, é importante o envolvimento da sociedade civil por meio de seus segmentos organizados, no sentido de cobrar respostas e ações adequadas de seus governantes, seja em nível federal, estadual ou municipal. Esse cenário descrito somente irá mudar com o engajamento de todos no processo de formulação, implementação e fiscalização das obras que integram as políticas públicas, em todos os níveis, especialmente nas áreas de saúde, educação, segurança e transportes.;

A legislação brasileira é falha quanto à punição de governantes que não encaram como prioridade a conclusão de obras lançadas?
;A legislação, ou ausência dela, é apenas uma parte desse processo distorcido que vivenciamos no país. É inconcebível a existência desse significativo conjunto de obras importantes que se encontram inacabadas, tanto em nível federal, estadual como municipal. O descomprometimento dos novos governantes em promover a conclusão de obras inacabadas precisa ser alterado em todos os níveis de governo. Todos perdem com essa omissão dos governantes, em particular as pessoas e a economia da região onde essas obras estão localizadas. Acredito que é importante que as pessoas prejudicadas por essas obras paralisadas, notadamente nos períodos eleitorais, exijam dos candidatos que incluam nos seus planos de governo a conclusão das mesmas. Dessa forma terão argumentos e instrumentos concretos para cobrar dos governantes posteriormente.;