Cientistas acreditam estar próximos de detectar a origem do mal raro e mortal que, há pelo menos cinco décadas, atormenta uma família do interior goiano. Os pesquisadores se empenham para concluir o mapeamento genético dos 21 portadores de xeroderma pigmentoso nascidos ou moradores de Araras, distrito de Faina (GO), a quase 500km de Brasília. Em breve, eles iniciarão a investigação de amostras de sangue dos pacientes. A equipe pretende identificar casos suspeitos para realizar um trabalho preventivo e evitar a disseminação da enfermidade na comunidade, além de reduzir os efeitos nos doentes que, por ventura, venham a se infectar. A moléstia, transmitida de pai para filho, deixa a pessoa hipersensível à luz, causa câncer, mutila e mata.
Apesar do sucesso nos estudos, o raro fenômeno genético, mostrado em reportagens publicadas pelo Correio em outubro de 2009, demonstra ser muito mais preocupante. Os cientistas suspeitam que o número de portadores de xeroderma em Araras pode ser três vezes maior. Além dos 21 doentes no povoado do noroeste goiano e de dois parentes deles que vivem nos Estados Unidos, podem haver outros 60 casos. A confirmação depende de exames em análise na Universidade de São Paulo (USP). Nos últimos 50 anos, 20 pessoas com origem no lugarejo morreram em decorrência da doença. Mais de 60 perderam a vida com os mesmos sintomas, mas não tiveram diagnóstico médico. Em nenhuma outra parte do mundo, houve registro de uma incidência tão intensa dessa enfermidade.
Após a publicação de reportagens do Correio, mostrando como vivem e sofrem os doentes do povoado em função do descaso do Estado, as autoridades goianas e a comunidade acadêmica decidiram investigar o problema e socorrer os portadores de xeroderma. Há um ano, geneticistas da USP e da Secretaria de Saúde de Goiás estudam o fenômeno. Além de examinar os 21 pacientes de Araras, eles coletaram material genético de todos os familiares que não manifestam a doença, mas que têm tudo para adquiri-la. ;Estamos montando o heredograma das famílias de Araras. Parte do sequenciamento dos genes está sendo finalizada. Com ele, vamos construir um kit de identificação para os pacientes, estudar caso a caso;, explica o biomédico geneticista Rafael Souto, da Secretaria da Saúde goiana.
Fenômeno raro
Cerca de 200 famílias moram em Araras. A maioria é formada por casamentos entre parentes, principalmente primos. E é justamente esse hábito que tem levado à perpetuação e à proliferação do xeroderma na comunidade. Essa é um enfermidade recessiva, mais comum entre pessoas nascidas de uniões consanguíneas (entre parentes), em que a chance de duas pessoas terem o mesmo erro genético é maior. A incidência média de casos no mundo é de um em cada grupo de 200 mil pessoas. Em Araras, são ao menos 21 casos numa comunidade de cerca de mil pessoas. É a maior concentração da doença já registrada pela comunidade científica.
Fenômeno semelhante ao de Goiás ocorre em um grupo indígena da Guatemala. A maior diferença é que os doentes do país da América Central não vivem mais de 10 anos. Os de Araras conseguem chegar à fase adulta, mesmo sendo corroídos pelo câncer ao longo do tempo. O grupo goiano tem pacientes de 8 a 80 anos. Esse fator leva os cientistas a imaginar tratar-se de uma mutação leve, agravada por fatores ambientais, como a alta incidência solar. Sem aposentadoria por invalidez, instrução, dinheiro e acompanhamento médico ideal, os doentes de Araras passam a maior parte da vida expostos ao sol, pois sobrevivem da agricultura e da pecuária. Ao longo do ano, a região registra temperaturas entre 20;C e 35;C.
Em função das reportagens do Correio, os doentes de Araras passaram a ser estudados pelo Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, o maior do país nesse segmento. O geneticista Carlos Frederico Martins Menck, que integra a equipe, visitou a comunidade de Araras em março do ano passado. Considerado o principal estudioso de xeroderma pigmentoso no Brasil ; ele pesquisa a doença desde 1976 ;, o especialista mediu a radiação solar nas casas do povoado e coletou material para biópsia de seis pacientes. Desde então, tem feito o mapeamento do gene defeituoso que provoca a doença em seu laboratório da USP. Por ter origem genética, o xeroderma não tem cura, mas há como frear o desenvolvimento da doença, revertendo o gene defeituoso das próximas gerações. ;A mutação genética da família de Araras deve estar identificada até o meio deste ano;, acredita Menck.