Jornal Correio Braziliense

Cidades

Nas mãos de um aventureiro, réplicas de navios e aviões ganham vida

Pescador compulsoriamente aposentado e com muitas histórias para contar, Leonel Biana Heidk viajou pelos mares mundo afora e hoje, radicado em Ceilândia, dedica-se ao minucioso trabalho de fazer miniaturas de navios e aviões e a divulgar a importância da reciclagem

Nas mãos de Leonel Biana Heidk, 47 anos, morador de Ceilândia, qualquer ferro velho pode se transformar em réplica de navios e de aviões. As miniaturas parecem brinquedo de gente grande. Fazê-las foi o jeito que Leonel encontrou de contribuir para um meio ambiente menos degradado. Toda semana, ele percorre as ruas de vários locais do Distrito Federal de bicicleta em busca de matéria-prima para o trabalho. Aproveita aquilo que as pessoas abandonam na rua, quase sempre em local inadequado, como carcaças de computador, televisão, máquinas de lavar e outros tipos de ferro e madeira.

Leonel recolhe o lixo e, depois de banhá-lo com água sanitária, leva-o para casa, na QNM 4, em Ceilândia Norte. A transformação começa no quintal. Com uma faca de cozinha, uma chave de fenda e um esmeril antigo, Leonel dá forma nova aos objetos. Constrói imitações em tamanho reduzido ; entre 1,5m e 2m ; de barcos que ele viu pessoalmente, quando trabalhou em navios de pesca. ;Quero fazer um trabalho de conscientização para o reaproveitamento dos resíduos. Você acredita que, em vez de usar o que temos nas nossas ruas, o governo compra carcaça lá fora do país?;, alertou.

No mar, Leonel aprendeu a fazer os miniaviões e embarcações. Nascido em Mato Grosso do Sul, ele sempre teve fascinação pelo mar, mesmo antes de conhecê-lo. Estudou até a 8; série. Depois, resolveu ganhar o mundo. Sonhava conhecer o oceano, ver de perto aquilo que só conhecia pela televisão ou por meio de fotografias. Leonel queria mesmo era se aventurar. E conseguiu. Arrumou emprego em um navio europeu de pesca. Na embarcação, conheceu um grego chamado Constantino, que construía pequenos navios com o que sobrava de latões de azeitona.

O brasileiro observava atento os movimentos das mãos do grego. Tentava aprender aquela arte, que o instigava por ser ao mesmo tempo tão rústica e delicada. Leonel relata ter recebido uma proposta de Constantino. ;Ele queria que eu lhe contasse coisas do Brasil, principalmente do Rio de Janeiro ; que eu também não conhecia , que eu mostrasse mapas. Em troca, me ensinaria a fazer aqueles navios.;

Surpresas
Alguns colegas de embarcação, porém, alertaram Leonel sobre os perigos da amizade com Constantino. ;Todos diziam que ele fazia parte do ETA;, disse. Trata-se de um grupo terrorista ; a sigla, Euskadi Ta Azkatasuna, que significa Pátria Basca e Liberdade no dialeto local ; que ocorre em uma região da Espanha. A organização surgiu no fim dos anos 1950, em forma de movimento de resistência estudantil à ditadura militar do general Francisco Franco.

Leonel esteve em vários navios estrangeiros, pescando pelo mundo afora, conhecendo gente de várias nacionalidades e se aventurando. Enquanto isso, alimentava sua paixão por barcos. Como nunca pôde ter um de verdade, resolveu montar miniaturas. Em meados de 2000, precisou se afastar do trabalho. ;O mar tem muitos segredos. Eu via coisas fantásticas, mas me pressionavam para não contar a ninguém. Como eu não aceitei me calar a respeito do sobrenatural, fui obrigado a me aposentar;, conta.

O pescador passou a morar no Rio Grande do Sul. Com a morte do pai, em 2008, decidiu morar em Ceilândia, onde viveu durante grande parte da infância, para ficar perto dos familiares. O espírito aventureiro voltou a ter ideias inusitadas. Leonel decidiu que viria de Pelotas (RS) até o DF de bicicleta. Queria chamar a atenção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para questões trabalhistas e para a parcela mais pobre da população.

Ele partiu em 8 de setembro de 2008 e chegou a Brasília em 12 de dezembro seguinte, 30kg mais magro. Carregava um diário de viagem e, quando entrava em uma cidade diferente, pedia que policiais rodoviários carimbassem o caderno. ;Queria mostrar que não era foragido da polícia e que tinha um objetivo sério. Assim, as pessoas me acolhiam mais facilmente, me deixavam dormir e me davam comida.; Leonel pedalou 2.544km.

No caminho, a bicicleta estragou várias vezes e tentaram roubá-la outras tantas. Leonel se defendia com um estilete. Chovia muito e ele dormiu várias noites em cemitérios ; locais muito seguros, garante ; e em postos de gasolina. Durante a trajetória, o andarilho ganhou presentes, entre eles uma garrafa térmica na qual um gaúcho tomava seu mate, e que deveria ser entregue ao então presidente. Esse encontro, porém, nunca ocorreu. ;Ainda penso em conversar com ele (Lula) sobre reciclagem, sobre leis e tudo que vi nessa minha aventura. As pessoas pescam de forma predatória em toda a costa do Brasil, usam até bomba;, aponta.

Enquanto o sonho não se realiza, Leonel segue com seu projeto de reciclagem (de esperanças e de material) no quintal de casa. Os vizinhos param para ver as réplicas de aviões e navios. Os protótipos são feitos com esmero e muitos detalhes. ;Os navios têm até bote salva-vidas, a cabine dos donos, janelas e muito mais;, descreve. Leonel quer um dia fazer navios reciclados em tamanho real, para cenários de filmes. Os planos não cessam. Ele quer voar cada vez mais alto e navegar para longe, mesmo sem sair da terra firme. No decorrer de sua eterna aventura de viver, pretende escrever um livro.

Multirracial

A família demorou para saber a origem do sobrenome incomum. Acreditava-se que era japonês, porque o pai de Leonel tinha essa descendência. A matriarca, porém, era negra. A mistura rendeu filhos com feições parecidas com as dos indígenas. Depois de pesquisar, Leonel descobriu que Heidk é um nome comum na Alemanha. O pai dele foi adotado por uma família vinda daquele país e repassou o sobrenome aos herdeiros.