Jornal Correio Braziliense

Cidades

Apenas em fevereiro deste ano foram registrados 50 assassinatos no DF

Aos 64 anos, a dona de casa Francisca Rodrigues Gomes chora o assassinato do filho. Numa casa humilde na QNN 3 em Ceilândia, ela conta a trajetória do rapaz morto a tiros há pouco mais de um mês. Com apenas 7 anos, Silvano Gomes Rodrigues viciou-se em cola e solvente. Depois, veio a maconha e, por último, o crack. Francisca perdeu as contas de quantas vezes passou a madrugada em busca do filho em ;bocas de fumo;. Algumas das lembranças vêm acompanhadas de silêncio e lágrimas.

Francisca já viveu situações assustadoras, como quando se viu cercada por traficantes em Taguatinga. ;Eles fizeram uma roda e me deixaram no meio. Falei: ;eu vim buscar o Silvano;. Eles responderam: ;ele não está aqui, não;. Mas eu reconheci meu filho pelo dedão do pé. Ele estava jogado no chão, cheio de droga. Uma mulher falou para eles deixarem eu levar o meu menino. Mas avisaram: ;se ele voltar aqui, é um cara morto;;, relembra. No dia em questão, Silvano tinha apenas 12 anos. Segundo a mãe, depois desse episódio, ele passou a maior parte da vida na cadeia, até ser morto em 26 de fevereiro último.

A história da dona de casa de Ceilândia não tem final feliz e se repete com frequência cada vez maior no Distrito Federal. No último mês, 50 pessoas foram assassinadas em Brasília. No mesmo período de 2010, 39 perderam a vida dessa forma. O aumento é de 28%. O dado assusta ainda mais levando-se em conta que mais da metade das vítimas mortas em fevereiro deste ano tinham envolvimento com drogas ou crimes, segundo relatório da Secretaria de Segurança Pública a que o Correio teve acesso com exclusividade. Em março, até a última sexta-feira, ocorreram outros 50 assassinatos. Uma análise preliminar também revela que a maior parte das vítimas tinha antecedentes criminais diversos.

A reportagem percorreu delegacias de Ceilândia e do Gama para descobrir o motivo dessas mortes. Os investigadores apontam o uso ou tráfico de drogas como a principal causa. Delegado-chefe da 15; Delegacia de Polícia de Ceilândia, Fernando Fernandes diz que, em 60 dias, prendeu pelo menos 30 pessoas somente em quatro quadras da cidade. ;Em parceria com a Polícia Militar, estamos monitorando do usuário ao grande traficante. Quando prendemos o chefe de uma boca, o grupo rival tenta dominar aquele espaço;, relata.

Em todas as unidades policiais em que a reportagem esteve, os policiais relataram rixas entre grupos que vendem entorpecentes. Alguns dos criminosos são citados com nome, sobrenome e apelido. Os investigadores sabem qual área eles dominam, quem são os inimigos e até a ficha criminal, tudo de cabeça.

Guerra interna
Para a Segurança Pública, a quantidade de mortos associada ao perfil das vítimas pode revelar uma guerra entre os que sobrevivem dessa atividade ilegal. ;Quando a polícia chega e ocupa a área, desestabiliza o processo de organização dos criminosos. Se um ponto de droga fica sem comando, traficantes de outras áreas tentam ocupar aquele espaço, entram em conflito, matam e morrem;, exemplifica o subsecretário de Operações de Segurança Pública (Sosp), coronel Jooziel de Melo Freire. ;Para nós, não interessa se o bandido tem ou não antecedentes. É muito mais difícil cuidar desse tipo de vítima porque ela não aceita proteção do Estado;, diz.

Segundo o coronel, se o homicídio é um crime difícil de evitar, as possibilidades são ainda menores no caso dos que mantêm envolvimento com o tráfico. ;As chances de uma pessoa dessas ficar viva são mínimas porque elas têm envolvimento com drogas (usando ou vendendo) e vivem na região. Quando a polícia chega, quem não é preso migra para outras regiões e, às vezes, paga com a própria vida;, analisa. ;Só há uma maneira de evitar essas mortes. É preciso que o terceiro setor, órgãos ligados aos direitos humanos e à Justiça, faça um trabalho social com essas pessoas e consiga tirá-las dessa vida;, completa. Atualmente, o Executivo atua em três frentes: combate às drogas, aos crimes violentos e ações integradas das forças de segurança com outros órgãos do governo.

Um dos caminhos apontados pela diretora do Instituto Sou da Paz, Nelina Risso, para reduzir as mortes ; sejam as motivadas pelas drogas ou por motivos banais ; , é retirar as armas de circulação. Ela considera um equívoco analisar as estatísticas de assassinatos sob a perspectiva de quem está morrendo. Para ela, o importante é entender como essas mortes ocorrem. ;Dependendo da dinâmica das facções criminosas é possível que um aumento das mortes entres eles se dê em função da repressão do Estado. Mas não se pode colocar toda a culpa da criminalidade nas costas do tráfico;, ressalta Nelina.

Impunidade
Promotor criminal no Gama, Mauro Faria Leite atribui o aumento da criminalidade ; no DF e no Brasil ; à falta de punição. Ele lembra que até meados da década de 1970 quem matava respondia ao processo na prisão, mesmo quando não era pego em flagrante. O Congresso Nacional, porém, aprovou mudanças na lei e acabou com a pena preventiva para autores de crimes graves. ;Com isso, a prisão tornou-se exceção no Brasil. A regra é responder o processo em liberdade;, explica.

Nos anos 1980, uma nova mudança tornaria a lei ainda mais benevolente com o criminoso, na avaliação de Mauro Leite. ;Criou-se o sistema de progressão do regime fechado para o semiaberto e aberto. As pessoas ficam menos tempo na cadeia. E, na sequência, veio a pena alternativa;, enumera. Para Mauro Leite, todo esse ;afrouxamento da lei; fez do Brasil território em que poucos são punidos. ;É a impunidade que alimenta o crime no país. Não é o desemprego ou altos índices de inflação nem o péssimo sistema de saúde.Hoje não temos uma segurança pública digna;, afirma.

A saída, segundo o promotor, está na reforma do processo penal. ;Temos que aprovar a prisão preventiva para quem comete crimes graves como homicídio, roubo e extorsão mediante sequestro. E também para os corruptos. Também precisamos acabar com as penas alternativas. Hoje, temos uma Polícia Militar que evita o crime, uma Polícia Civil que apura e, mais adiante (Justiça), um sistema em que as pessoas têm a certeza da impunidade;, lamenta.


DEPOIMENTO
Vida difícil e prisão

;Nasci e cresci numa quadra dominada pelo tráfico. Dois irmãos meus foram assassinados. Um por engano e outro porque era viciado em droga. Entrei para o tráfico tarde, aos 20 anos. Eu não tinha nada na minha vida. Queria sair daquela dificuldade. Mas não tive tempo para conquistar o que queria. Fui preso e fiquei um ano e meio na cadeia. Vou lhe contar uma coisa: o sistema carcerário não reeduca ninguém. Só aprendi o que não presta lá dentro. Ficava o dia todo à toa, ouvindo um e outro dizendo que vai roubar e matar quando sair. Quando estava lá, pedi para estudar mas não teve jeito, porque minha mãe não conseguiu a declaração na escola. Saí da prisão em julho de 2007. Terminei o 1; grau e arrumei um emprego. Agora tenho um filho de um ano. Não quero para ele o que passei. Hoje, saio de casa às 6h para trabalhar e só volto à noite. Não é fácil. Parece que não consigo sair do lugar;.

Wellington (nome fictício), 26 anos. Ele vive na casa dos pais com a mulher, desempregada, e o filho.